Há alguns anos, minhas manhãs de domingo seguem uma rotina: meu marido e eu acordamos cedo, pegamos algo pra comer e vamos para o sofá assistir ao episódio da semana de Precure. Dependendo da disposição e do ânimo, outras séries podem ser acrescentadas à lista, como um Digimon Ghost Game ou um Pokémon Jornadas. Se você observar, há um ponto em comum em todos esses animes citados: nenhum foi feito para minha faixa etária, e sim para crianças.
O mercado de animes abrange muitas demografias, e normalmente somos mais impactados pelos grandes animes focados no público adulto, como Vinland Saga e Monster, ou então no público adolescente, como Chainsaw Man e Demon Slayer - Kimetsu no Yaiba. No entanto, a demografia de animes infantis é muito forte no Japão, além de conquistar sozinha números de audiência e vendas que um shonen de lutinha às vezes nem arranha. Mas essa não é uma matéria para falar o quão grandes são os animes infantis, e sim para mostrar como eles podem ser muito agradáveis até para quem é adulto.
Por que um adulto assistiria a um anime infantil?
Pode parecer estranho, mas gosto de acompanhar animes infantis. Passada aquela fase mais “revoltada” de nossa juventude em que buscamos animes “maduros” e “violentos” para reafirmar nosso processo de amadurecimento, os animes infantis trazem uma leveza e um relaxamento como poucos. Mesmo séries novas trazem um ar de “nostalgia”, temos a sensação de estar assistindo a algo muito familiar e afetivo por ser parecido com produções que víamos durante nossa própria infância.
Antes de prosseguirmos é importante deixar claro o que vamos considerar um anime infantil. Quando se trata de uma obra que nasceu em mangá é mais fácil de definir porque é só conferir a demografia: um título publicado numa revista infantil como a Coro Coro Comics só pode ser um anime focado no público mais novo, já um Detective Conan é classificado como um shonen por sair em uma revista de demografia juvenil masculina. Entretanto, quando falamos de animes sem versão em quadrinhos a coisa pode ficar um pouco complicada de definir, mas um ponto de referência bom por ser os horários de exibição no Japão: se a série é exibida durante um horário que uma criança pode assistir, então o anime pode ter aquele público.
Essa classificação pode não ser tão precisa assim, uma vez que há exceções a serem consideradas. Embora séries claramente destinadas a um público infantil, como Crayon Shin-chan e Doraemon, possam ser facilmente categorizadas como tal, outras como One Piece desafiam essa classificação. É importante lembrar que existem diferentes tipos de animes shonen, alguns que não são adequados para crianças, como Demon Slayer e Attack on Titan, exibidos de madrugada, enquanto outros são adequados, como One Piece, exibido nas manhãs de domingo juntamente com Precure e as séries Super Sentai (aquelas de heróis coloridos e robôs gigantes). Portanto, é preciso considerar as nuances e graduações dentro da classificação dos animes shonen.
Normalmente episódicos, os animes infantis costumam ter uma estrutura e características próprias. É comum encontrarmos protagonistas crianças, até para levar a uma identificação com o público, e a história contém uma moral muito forte. As tramas podem oferecer algum ensinamento às crianças, geralmente algo relacionado a amizade, trabalho de equipe ou noções de convívio em sociedade. Outro aspecto positivo de animes infantis - e que consequentemente atraem muito os adultos - é a questão do humor.
Séries leves e com pastelão são capazes de atrair tanto as crianças quanto os adultos, e podem servir como um ponto de intersecção entre esses dois públicos. A franquia Precure nada de braçada nesse quesito. Por seguir a estrutura clássica de um Power Rangers com os clichês de um anime de garotas mágicas como Sailor Moon, Precure conta histórias envolventes para as crianças e aconchegantes para os adultos.
Ao assistir um episódio de Precure você sabe exatamente o que vai encontrar. As protagonistas crianças enfrentarão alguma questão na vida cotidiana, um monstro surgirá do nada, teremos um combate sem apelação excessiva para violência e, por fim, uma lição de moral que fecha a história e leva à evolução das personagens. Formulaico sim, mas muito agradável.
Isso sem falar que produções para adultos são bastante aclamadas por suas cenas de violência, temas pesados e batalhas intensas, mas às vezes queremos só relaxar e estar em contato com um conteúdo mais positivo, afinal de tristeza já nos basta a vida. Dificilmente um tema de anime infantil como Precure vai te ofender ou chocar, fazendo com que essas produções tenham um aspecto bem leve e otimista.
Trabalhando com dois públicos
Um anime que considero muito competente em atrair todos os públicos é Yo-Kai Watch, atualmente indisponível em serviços de streaming. A história é aquela coisa bem Pokémon, com o protagonista Nate descobrindo que muitas coisas no mundo são causadas por interferências de youkais, criaturas fantásticas do Japão. Com a ajuda de um relógio mágico, ele precisa fazer amizade com esses youkais e evitar maiores confusões.
O anime de Yo-Kai Watch, principalmente suas primeiras temporadas, é um exemplo ideal de como se construir a série em muitas camadas. Há a camada que o torna atrativo para crianças, como o humor simples e a parte dos monstrinhos, mas há também conteúdo para divertir os adultos, com paródias de produções mais antigas e alguns personagens mais maduros que os demais. Todos os trechos envolvendo o cão Sarnento, um cachorro com cara de adulto que vai parar na cadeia, ou as aventuras de Komasan na cidade grande, parecem extraídas de uma série de humor exibida de madrugada, mas está ali em um anime infantil.
E com o passar do tempo parece ter aumentado a frequência de histórias infantis com elementos compreendidos apenas pelos mais velhos. Na franquia Precure, por exemplo, as últimas temporadas contaram com vilões que sentiam como se trabalhassem em uma empresa muito exigente. Os antagonistas demonstravam uma insatisfação profissional, cansaço com jornadas longas e momentos de desabafo sobre suas vidas, algo que pode passar em branco pelo público alvo infantil, mas que gera uma identificação com os adultos assistindo àquilo.
Mas um dos animes para crianças que mais mexeu comigo nos últimos tempos foi The Genie Family (Hakushon Daimaoh 2020 no original). A série é a sequência do anime Hakushon Daimaoh de 1969 que mostrava historinhas do garoto Kan, dono de uma garrafa mágica que liberava o gênio Hakushon toda vez que alguém espirrava. A série foi exibida no Brasil em pelo menos duas ocasiões, primeiro a série “original” com o nome O Gênio Maluco em meados dos anos 1980 e no final dos anos 1990 uma versão americana chamada Bob, o Gênio. Fui ter contato com a série original em reprises no começo dos anos 1990 e eu adorava aquele tipo de humor e aquele traço muito diferente. Isso inclusive foi antes de saber o que era anime, pois Os Cavaleiros do Zodíaco (responsável por popularizar a animação japonesa) viria a estrear só dali alguns anos.
A sequência de 2020 é protagonizada por Kantaro, neto do protagonista do original. Ele ganha a companhia de Akubi, a filha do gênio do primeiro anime, que vai à Terra para conhecer mais os humanos e ajudar a colocar algum objetivo na vida de Kantaro. O garoto só quer saber de passar o tempo à toa e se dedicar a seu hobby por trens, então a cada episódio Akubi apresenta uma profissão à Kantaro, causando mil confusões no processo. O anime é completamente caótico, e muito engraçado. Mais gênios vão se enfiando na vida de Kantaro, e causando interações absurdas com os amigos e parentes do menino. O desenho animado, que é quase uma feira de profissões em formato de anime, sabe dosar muito bem a comédia com o teor mais “educativo”, e chega ao fim de uma forma muito emocionante.
Claro que há o fator nostálgico, ver aquele gênio enorme saindo de uma garrafa é algo que me traz uma nostalgia inconsciente, é como se alguma parte lá do fundinho da minha memória lembrasse daquele personagem na infância, mas The Genie Family surpreende não por apelar para o passado, mas sim para discutir sobre o passar do tempo. Como o anime é ambientado quarenta anos após o original, os personagens podem falar sobre evolução tecnológica e dos costumes japoneses, dando uma outra camada muito boa para o anime.
Como se pode ver, nem só de homem motosserra e filtro escuro é feito o otaku, é necessário ter alguns momentos nos quais podemos curtir algo simples com o cérebro desligado. Além de me atraírem por suas histórias simples e bem contadas, algo perfeito para se relaxar numa manhã de domingo, acho que eu gosto quando o anime infantil nos surpreende com alguma passagem mais madura ou com alguma reflexão que pega no coração dos mais velhos. Experimente você também dar uma chance para esse tipo de anime, você não faz ideia do quão relaxante pode ser.
Quais animes assistir?
Caso não saiba por onde começar, trago aqui boas sugestões de animações leves e agradáveis. Mas lembre-se que você é sempre um “intruso” no público do anime infantil, não dá pra exigir que as histórias sejam mais profundas ou mais violentas porque o anime é feito para um público alvo diferente do seu. Mas, tendo isso em, dá pra curtir muito bem esses animes.
Soaring Sky Precure (Crunchyroll): já temos uma matéria aqui explicando como a franquia Precure é a “sucessora espiritual” de Sailor Moon, e a cada ano uma nova temporada surge com novas garotas mágicas e poderes ainda mais fofos. Como as séries não se conectam, você pode escolher qualquer uma para começar, e a sugestão é a atual Soaring Sky Precure. Dessa vez acompanhamos um novo grupo de garotas lideradas por Sora, uma habitante da terra de Skyland que foi parar no Japão enquanto protegia a princesa Elle. Lá ela cria fortes laços de amizade com a garota japonesa Mashiro e juntas vão descobrir o que é ser heroína de verdade (com direito a muita transformação espalhafatosa com efeitos de luz e inspiração de idols).
Super Onze (Prime Vídeo e Pluto TV): se está cansado da abordagem mais realista de Aoashi ou Blue Lock (neste caso, aspas em “realista), Super Onze pode ser uma ótima oportunidade para se divertir com um anime de esporte sem precisar pensar muito. No anime vamos assistir a um time escolar de futebol em que todo mundo tem algum poder mágico absurdo para usar em campo. A primeira temporada está disponível no Prime Video e de graça na Pluto TV.
Pokémon (Netflix): essa aqui é uma sugestão clássica. A franquia Pokémon está há décadas no ar e a qualquer momento você pode voltar a acompanhar as aventuras de Ash em busca de ser um mestre Pokémon. Por mais que sejam histórias ainda episódicas, o anime às vezes surpreende com fanservice para os mais velhos e batalhas muito empolgantes. E não pense que só veremos histórias bobinhas, porque Pokémon gosta de surpreender com tramas ultra dramáticas capazes de arrancar umas lágrimas de adultos. Isso sem falar que a Equipe Rocket parece ter sido criada para divertir a nós, adultos.
The Genie Family (Crunchyroll): mesmo sendo continuação de um anime muito antigo, é perfeitamente assistível para quem nunca viu a família gênio antes. O formato episódico mostrando uma profissão por história funciona muito bem e leva a episódios geniais como o que eles aprendem como é a profissão de animador ou quando ele tenta salvar um restaurante japonês de uma crise. E o melhor? Tem apenas 20 episódios, sendo o mais curto aqui dessa lista.