Imagine uma garota que utiliza tortura psicológica como forma de demonstrar afeto por um colega vítima de bullying no passado. Essa frase não descreve apenas um cenário de pessoas que precisam de acompanhamento profissional, mas também é a sinopse do anime de comédia romântica Don't Toy With Me, Miss Nagatoro (Ijiranaide, Nagatoro-san no original).
Criada pelo artista Nanashi, Nagatoro é um daqueles casos de produção com uma recepção mista na internet. Enquanto um lado é composto por fãs ardorosos das traquinagens da garota de cabelos roxos, há gente que se incomoda com a abordagem de bullying ou mesmo com a forma na qual a personagem feminina é construída na história.
Minha primeira vez com Nagatoro foi em 2021, com a estreia da primeira temporada na Crunchyroll. Cada episódio do anime é composto de mini histórias - normalmente duas ou três - protagonizadas pela dupla Naoto Hachioji, o “senpai”, e a adolescente Hayase Nagatoro. A história se inicia quando a garota se encanta à primeira vista por seu veterano, e a forma que ela encontra de se aproximar dele é praticando todo tipo possível de bullying: Nagatoro o ofende, o provoca sexualmente e ameaça expor seus gostos mais escondidos.
O anime na verdade é uma adaptação da versão em quadrinhos lançada desde 2017 na Magazine Pocket (app da Kodansha, editora responsável pela Shonen Magazine), e o sucesso desta publicação rendeu a adaptação animada produzida pela Telecom Animation Film (de Tower of God). Porém, essa não é a primeira versão de Nagatoro criada pelo autor, pois ele havia publicado antes uma “versão piloto” da história na comunidade de compartilhamento de conteúdo Pixiv. Essa outra história era levemente mais pesada que a publicada pela Kodansha, com Nagatoro tendo uma personalidade sádica cujo prazer estava em causar dor física ao seu amado veterano.
Todas as vezes que critiquei Nagatoro com base na minha péssima primeira impressão, percebi uma base de fãs disposta a defender o anime com unhas e dentes, então poderia ser sim um caso de série que vai melhorando no decorrer da história. Com o lançamento da segunda temporada de Don't Toy With Me, Miss Nagatoro, dessa vez trazendo o subtítulo 2nd Attack e agora produzida pela OLM (de Komi Can’t Communicate), achei que seria uma boa oportunidade para dar uma outra chance ao anime. Minha opinião sobre a série realmente melhorou… mas não tanto.
Uma nova chance
Don't Toy With Me, Miss Nagatoro é uma história bastante repetitiva. Aquela premissa inicial de “garota atormentando o rapaz que ela gosta” é reiterada à exaustão em histórias que começam do nada e vão a lugar algum. E não é nem um caso de iyashikei, aquelas histórias sobre o dia a dia cujo objetivo é dar um quentinho no coração, Nagatoro parece uma reprise de si mesmo. Veja bem, não há qualquer problema em uma história refazer situações, boa parte das grandes comédias românticas da cultura otaku se escoram nisso, mas Nagatoro faz de uma forma que até confunde quem assiste. Em mais de uma situação tive a impressão de ter colocado um episódio repetido para rodar, para só depois perceber que aquela se tratava de uma história “inédita”.
Esse problema em si não incomodaria se o anime conseguisse nos arrancar risadas com as situações de bullying provocadas pela Nagatoro, mas o anime parece ser um inimigo natural do humor. As brincadeiras sexuais são constrangedoras, a garota chamando seu veterano de “virjão” é um recurso que cansa rápido e o anime se esforça muito pouco em variar as tramas. Na verdade é até um prodígio como o autor Nanashin consegue criar tantas situações sem graça em uma suposta história de humor com pitadas de erotismo.
Acompanhar Nagatoro é saber que veremos muitas insinuações sexuais, mesmo não sendo um produto destinado a adultos. Em um episódio a garota pede para seu senpai apalpar pães que foram colocados em seu sutiã, mas um dos carboidratos cai no chão e o veterano acaba fazendo o “teste cego” nos seios da garota. Em outro momento, Nagatoro percebe as mãos sujas de seu senpai e decide ela mesma lavar com sabonete e esfregação, mas o momento perde sua “pureza” ao vermos que o gesto para a higiene pessoal remete a outra coisa. Como boa parte dos animes adolescentes com toque de ecchi, Nagatoro até tenta deixar subentendido algumas mensagens, mas o faz sem qualquer sutileza.
Há duras críticas na internet pelo fato de Nagatoro ser uma história criada por um ex-artista de tramas eróticas, o que é um julgamento moral exagerado: vamos lembrar que muitos artistas no Japão vieram desse mercado e no geral isso em nada afeta seus trabalhos atuais. O problema real é que Don't Toy With Me, Miss Nagatoro não consegue se sustentar nas próprias pernas. Uma comédia romântica desse tipo clama por mais personagens, mas o anime se passa numa realidade na qual praticamente não existem outros seres humanos. Outras pessoas só aparecem quando é extremamente necessário para o roteiro, e ainda assim elas são caracterizadas sem olhos, uma forma para mostrar que não são tão importantes assim.
Nagatoro até ganha um pouco mais de força quando as amigas da personagem título se tornam presença mais frequente na trama, mas suas personalidades são tão idênticas que mais parecem uma célula que realizou algumas mitoses para se multiplicar. O anime só dá algum respiro de criatividade em seus episódios finais, quando temos um mini-arco no qual Nagatoro e seu senpai se unem para vencer um desafio proposto pela presidente do clube de artes. A história mediana está longe de empolgar, mas ao menos tira o anime do marasmo por apresentar uma outra personagem que tem uma gotícula de personalidade.
Um relacionamento abusivo?
Don't Toy With Me, Miss Nagatoro tenta se vender como um anime leve para se desligar a cabeça, mas algumas coisas ficam difíceis de defender. O protagonista masculino é apresentado como alguém que sofreu muito bullying durante a juventude, e a forma que arranjou para lidar com isso é “se fingindo de morto”. Nagatoro percebe essa estratégia e usa suas provocações como forma não só de demonstrar seu afeto, mas também de fazer seu senpai reagir. E embora a garota muitas vezes atravesse a linha do aceitável, o veterano se vê dentro de uma relação desarmônica na qual ele precisa ter Nagatoro por perto, mesmo que isso o machuque. É quase uma romantização da humilhação.
Tudo isso dá uma aparência de relacionamento tóxico para Nagatoro e Naoto, algo que pode deixar muitas pessoas desconfortáveis. Defensores da série até alegam que está tudo bem porque Nagatoro pratica bullying recreativo por amar seu veterano, e que ela age assim somente com ele, mas o sentimento sincero não faz que um relacionamento seja saudável. É uma discussão muito mais complexa e, óbvio, não abordada pela história porque a intenção do autor é fazer uma comédia, e é até injusto exigir de uma série assim uma consciência educativa quando não existe essa proposta de debater a questão.
Acredito que o anime poderia ser melhor aceito pelas pessoas se não partisse de uma premissa tão pesada. Outras comédias românticas do meio otaku abordam melhor o relacionamento entre uma pessoa mais provocativa e outra mais recuada, principalmente porque não colocam um problema grave do mundo real como background do protagonista. Mas deixando de lado toda essa discussão sobre relacionamento tóxico e bullying, algo que não tem uma resposta correta, o principal pecado de Don't Toy With Me, Miss Nagatoro acaba sendo a falta de graça.
Acompanhar o sentimento de Nagatoro crescendo pelo seu senpai com o passar das provocações é difícil quando o pedágio é ver a mesma piada de xingar o veterano e promover insinuações sexuais. Assistir à temporada inteira me fez desgostar menos do anime, mas não a ponto de curtir: a experiência continuou cansativa e mesmo o momento mais interessante da história, o arco do clube de artes, proporcionou histórias de muito marasmo e humor repetitivo. Se antes eu achava um anime “terrível”, agora posso classificá-lo como um “ruinzinho”. Foi uma evolução? Com certeza, mas a que custo?
Onde assistir?
Caso tenha ficado curioso para conferir Don't Toy With Me, Miss Nagatoro, o anime está disponível oficialmente na Crunchyroll. A primeira temporada pode ser vista tanto com legenda em português quanto com uma (ótima) dublagem em português. Para ver a segunda temporada, a mesma Crunchyroll tem lançado os episódios semanalmente na plataforma.
O primeiro episódio também foi disponibilizado de graça no YouTube do serviço de streaming:
Para os adeptos da leitura, aí temos um problema: o mangá de Nagatoro até o momento de publicação desta matéria não foi anunciado por editora alguma, e o aplicativo da Kodansha que publica o título não está disponível para a gente. O jeito é contar com importação de outros países que já licenciaram o título.
Mas o conselho verdadeiro é que procure por outras comédias românticas: na Crunchyroll há opções mais competentes, como The Quintessential Quintuplets ou A Couple of Cuckoos.
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