A jornada de Evangelion foi muito mais longa do que os fãs poderiam imaginar quando o anime original chegou ao fim, lá nos anos 1990. Mais de 25 anos depois da estreia, Hideaki Anno parece ter concluído a obra da vida dele definitivamente — de uma maneira absolutamente espetacular.
Seja você um profundo conhecedor do universo de Evangelion ou um mero entusiasta que conheceu a franquia por meio dos filmes Rebuild e não vê a hora de assistir à conclusão, é difícil imaginar qualquer reação a Evangelion: 3.0+1.0 Thrice Upon a Time que não seja extremamente forte, independentemente se negativa ou positiva.
Todas as ideias trabalhadas ao longo de décadas de desenvolvimento de personagens culminaram em uma das mais profundas experiências já proporcionadas por uma animação na história, seja oriental ou ocidental. Não é difícil perceber que, mais do que qualquer luta ou preocupação estética, o foco do longa-metragem animado está nos componentes humanos dessa realidade assustadoramente encantadora e surrealmente realista.
Depois da conclusão desesperadora de Rebuild of Evangelion 3.0: You Can (Not) Redo, Shinji não teria como continuar sendo a pessoa que sempre foi. Nem sempre convivemos em paz com as escolhas que fazemos e, em alguns casos, a situação pode sair de controle completamente. O protagonista de Evangelion está longe de ser uma exceção a esse fato, como bem sabemos, e o roteiro aceita abrir mão de uma participação mais ativa do personagem nas cenas iniciais em nome de algo maior.
Indiferente a tudo e todos, inclusive ao que acontecerá consigo mesmo, aparentemente, observar o sofrimento de Shinji pode despertar sensações diferentes em cada espectador. Compaixão, por nos identificarmos com a situação na qual ele se encontra, por exemplo, ou até mesmo raiva, por não conseguirmos engolir que ele evite encarar as consequências dos próprios atos. Se você está no segundo grupo, provavelmente, é um fã da Asuka (meu caso, inclusive, entendo perfeitamente). Contudo, tente se lembrar de que não foi ela quem mais colaborou para que esse protagonista traumatizado tivesse força para continuar vivendo no mundo que acabou gerando.
O isolamento de Shinji acaba sendo fundamental para que o espectador acompanhe também o crescimento individual das outras duas personagens que completam o trio principal: Rei e Asuka. Não podemos dizer que ambas passam por transformações igualmente intensas, mas há muito o que apreciar em ambos os casos.
Asuka, como bem sabemos desde a história original, só consegue lidar com a própria solidão quando acredita que está cumprindo um dever. Sem o EVA, ela se sentiria uma pessoa infeliz e irrelevante, embora tente se convencer do contrário constantemente. Digamos que esse dilema, da pessoa que tenta alcançar algo próximo da felicidade por meio apenas do trabalho, está longe de ser algo incomum, mesmo no nosso mundo. Não é difícil imaginar quais consequências viver dessa forma pode trazer.
Enquanto Shinji se afunda em si mesmo e Asuka evita olhar para dentro por tempo demais, Rei Ayanami descobre o mundo. Desprovida de qualquer conhecimento a respeito do cotidiano pacífico comum, ela começa a aprender um pouco mais sobre a vida em sociedade; sobre as relações humanas e a progressão dessa espécie. Ver essa breve jornada de descoberta de Rei é simplesmente inesquecível tanto pelo aspecto psicológico quanto pelo uso inteligente do humor, com algumas "piadas" que acabam sendo engraçadas e instigantes ao mesmo tempo. Respostas simples para perguntas que nunca são feitas podem levar a inúmeras considerações a respeito de tudo o que sempre fez parte do que chamamos de normalidade.
Todos os personagens principais possuem dúvidas e anseios com os quais qualquer pessoa pode se identificar. No entanto, muito do que há de mais impressionante na história vem de maneira sutil. Não espere por frases de efeito que passam uma mensagem de maneira direta ou claros indícios de uma "moral da história", não. Apenas traduza os acontecimentos concretos para uma perspectiva abstrata. Alguns dos melhores diálogos não se limitam ao explícito.
Acredite se quiser, mas até Mari se tornou mais interessante no último filme de Evangelion. Embora ainda não tenha tantas camadas quanto os demais personagens, ela está no centro de acontecimentos extremamente relevantes para a história e se torna mais cativante conforme os acontecimentos progridem. Aliás, como essa mulher brilha nas cenas de luta, nossa senhora. A ferocidade do EVA quando é ela quem está no controle é inacreditável.
Quem mais se beneficiou dos filmes de Evangelion, entretanto, foi o pai de Shinji, o tão enigmático Gendo Ikari. Se você sempre quis saber mais a respeito dele e das motivações do "grande vilão" de Evangelion, chegou a hora. Nunca na história da franquia houve tanta preocupação com expor, de maneira incrivelmente detalhada, os sentimentos do pai de Shinji. Se você vai comprar a visão dele ou não, aí é outra história. Aliás, é curioso como a dualidade de Shinji e Gendo apresenta dois desfechos possíveis para arquétipos semelhantes de personalidade. Influenciados pelas circunstâncias e pessoas que encontraram, pai e filho tomaram caminhos diferentes, embora compartilhassem mais características do que se imaginava.
Embora os principais méritos de Evangelion: 3.0+1.0 Thrice Upon a Time estejam na maneira como o filme lida com os personagens, o uso da trilha sonora merece destaque. Seguindo o padrão estabelecido em The End of Evangelion, as músicas muitas vezes transmitem sensações completamente diferentes das cenas em que são tocadas. Essa incoerência intencional fortifica consideravelmente a ironia de determinadas situações, como o desespero vivido pelos personagens, que são observado pelos espectadores entretidos e contentes. De qualquer forma, ouvir a tradicional música de batalha desperta um sentimento de nostalgia mais forte do que qualquer emoção no coração de quem sente saudade do dia em que conheceu esse universo.
Visualmente, o último filme de Evangelion ainda pode passar por correções no futuro. Não digo que vá surgir um remake ou qualquer coisa do tipo, mas há momentos nos quais as animações em CG destoam demais. Esse estranhamento pode levar a uma breve ruptura de imersão, embora não seja algo tão grotesco quanto o que acontece na primeira temporada de Golden Kamuy, por exemplo, longe disso. Talvez um dia vejamos uma nova versão com melhor acabamento neste sentido, apesar da improbabilidade.
Ignorando os problemas de CG, algumas lutas não tão bem coreografadas e determinados ângulos de câmera que são absolutamente desnecessários, estamos falando de uma conclusão praticamente impecável para um universo que tomou uma dimensão simplesmente absurda. É impressionante que tudo não tenha se perdido em meio às toneladas de metáforas e camadas de construção de mundo.
Não há motivo para que você deixe de assistir aos filmes Rebuild se gostou da série original. Acredite: mesmo que algumas mudanças possam parecer extremas, o núcleo da discussão iniciada tantos anos atrás se manteve em constante desenvolvimento. E é fundamental assistir até o último segundo para você entender não apenas a evolução da obra como também do diretor Hideaki Anno, que conseguiu, junto de toda a equipe, criar uma conclusão coerente para um dos universos mais complexos dos animes. A esta altura, devo dizer "o" mesmo.
O ciclo iniciado com Neon Genesis Evangelion chegou ao fim. Agora, mais do que nunca, o título da primeira série passou a fazer sentido. Com a obra completa, podemos voltar a constatar o óbvio: Evangelion é um dos melhores animes de todos os tempos.
Direção: Mahiro Maeda, Kazuya Tsurumaki, Katsuichi Nakayama, Hideaki Anno