Toda arte tem seu mestre. Em algumas delas, eles são chamados de gênios, outros de mãe ou pai daquele movimento, mas são poucos os artistas que conquistam a alcunha de “deus”. Com uma mente muito à frente de seu tempo, Osamu Tezuka, o deus do mangá, criou alguns dos títulos mais importantes da história como Dororo, Budha, Metrópolis e sua obra-prima, Astro Boy. Nela, conhecemos um mundo onde humanos e robôs dividem espaço e um jovem androide chamado Atom (ou Astro, no ocidente) protege a Terra de inimigos terráqueos ou não.
E, assim como Tezuka abraçou Pinóquio para dar vida ao Astro Boy, três décadas após sua morte, Naoki Urasawa (Monster e 20th Century Boys) remontou a obra-prima do deus em Pluto. O mangá de oito volumes não apenas trouxe um olhar contemporâneo para a história de Tezuka, como também um tom de investigação policial para a trama dos robôs. Por esse motivo, mesmo tendo sido lançado junto a outras homenagens e releituras de Tezuka, Pluto se destacou, e agora ganhou uma bela adaptação em anime pela Netflix.
No anime, assim como no mangá, humanos e robôs coexistem em harmonia. Uma série de assassinatos se inicia, porém, vitimando cientistas e os sete robôs mais avançados do mundo. O caso vira uma grande investigação da Europol, e o detetive-robô Gesicht entra em ação para desvendar o que está por trás dos massacres, que mais parecem obra de um robô. Enquanto boa parte da história foca no detetive e em suas impressões dos fatos, o foco oscila no decorrer dos episódios e dá destaque para os demais super-robôs, como Epsilon e Atom, o Astro Boy.
Mesmo sendo o personagem que possibilitou que Pluto existisse, o robô em forma de criança não fica com todo o método da trama para si. Um dos principais trunfos da releitura de Urasawa é justamente criar um trabalho em equipe realmente funcional. Todos os personagens que passam pelo centro da trama têm sua importância para a construção da história. E, nenhum deles, mesmo que tenham morrido prematuramente na obra, acaba inútil para a história.
Por serem máquinas controladas por inteligência artificial, os robôs não parecem possuir emoções genuínas. Todos eles estão sempre observando e imitando reações humanas para se relacionarem no dia a dia. Choro, riso, raiva e desespero são construções diárias que apenas as máquinas mais avançadas conseguem fazer. Esse aprendizado constante serve como motor para a evolução desses personagens, que precisam viver suas histórias em um enredo de poucos dias.
Mas o anime usa essa relação entre humanos e IA para ir além de seu universo e referencia os debates contemporâneos sobre o uso da ferramenta. Já no primeiro episódio, vemos se desenvolver uma interessante discussão sobre arte feita por inteligência artificial. De um lado, um maestro cego e aposentado tenta compor uma nova música, mas sem sucesso; de outro, North Nº 2, um dos sete robôs mais avançados do mundo.
Após vivenciar a guerra, a máquina deseja levar uma existência pacífica como mordomo e vai trabalhar para o músico ranzinza. Nos primeiros dias ele tenta tocar piano, mas é agressivamente expulso pelo velho maestro. O homem alega que uma máquina não pode compor, e o robô diz que pode aprender. A discussão segue durante os dias de convivência entre os dois e a solução vem da forma mais humana possível: o músico passa a criar afeição pela máquina e, consequentemente, a humanizá-la. Essa conexão afetiva de repente passa a validar o desejo da máquina por compor e a música que ele produz. Essa divisão entre homem e máquina se estreita no anime, que eleva o debate entre humano e inumano na cultura pop a um nível revolucionário, como apenas Blade Runner e Matrix já conseguiram.
Misturando a nostalgia de um clássico de Tezuka à modernidade e suspense típicos de Usurawa, Pluto entrega uma trama robusta e densa, mas que não abre mão de entreter com facilidade. Contemplativo, instigante e encantador, o anime dirigido por Toshio Kawaguchi (Akira, Ghost in the Shell) possui a alma do deus do mangá e é um dos maiores lançamentos de sua época.
Criado por: Pluto
Duração: 1 temporada