Com tantos animes e adaptações live-action fazendo sucesso, é comum que muitas pessoas que nunca tiveram contato com o universo otaku passem a se interessar por esse meio. E na base de tudo isso está ele: o mangá. A mídia original é o fruto de inspiração para praticamente todos os animes e demais adaptações, como filmes, séries e peças teatrais. Nesse primeiro guia, vamos destrinchar os mangás e te contar tudo o que você precisa saber antes de abrir um.
Descrevendo de uma forma chula, podemos dizer que os mangás são basicamente os quadrinhos japoneses. Mas mesmo que partíssemos dessa simples descrição, ainda há diferenças gritantes entre cada tipo de publicação. No mangá, por exemplo, não temos coloração nas páginas internas, enquanto nos gibis as cores são um fato fundamental, existindo até profissionais especializados e premiações por este trabalho.
Outra diferença entre o mangá e o gibi é que o mangá começa a ser lido de trás para frente. Parece um conceito esquisito, mas após ler poucas páginas é possível adquirir uma leitura natural. Quando você pegar um mangá para ler, basta abri-lo no que para nós no ocidente seria a última página. Lá, você encontrará o início do volume que você está lendo. Feito isso, basta começar a sua leitura do primeiro balão da parte superior direita. Dependendo da editora brasileira, se você abrir o mangá pelo lado errado, haverá uma mensagem avisando que aquele é o final do volume e, talvez, também haja uma ilustração mostrando a maneira correta de ler.
Além disso, o surgimento de cada uma das mídias é bem distinto. Enquanto os gibis modernos surgiram com Yellow Kid, em 1896, os mangás têm uma origem diferente. Acredita-se que o termo mangá tenha sido criado em 1814, com o Hokusai Mangá, uma coletânea de ilustrações de Katsushika Hokusai. Talvez você não conheça a história do artista japonês, mas certamente já viu alguma referência de sua obra-prima, A Grande Onda de Kanagawa. O imponente retrato do tsunami ganhou homenagens em várias obras como Demon Slayer e One Piece, além de ter virado diversos tipos de estampa.
Já os mangás como conhecemos hoje em dia surgiram no início do século 20 e ficaram mais populares com o surgimento do promissor mercado das histórias em quadrinhos ocidentais. O nome mais expoente dessa geração foi o do mestre mangaká Osamu Tezuka. O artista é considerado por muitos o pai do mangá moderno, tendo criado obras icônicas como Astro Boy, Dororo e Kimba: o Leão Branco e muitas outras.
A história do mangá no Brasil
Apesar de toda essa diferença em relação aos quadrinhos, consumir mangás no Brasil hoje é mais comum para algumas pessoas do que ler as histórias da Marvel ou DC. Por aqui, a indústria dos mangás cresce mais a cada ano, com cada vez mais editoras publicando mais gêneros diferentes — sobre os quais falaremos adiante. Essa evolução de consumo, no entanto, faz parte de um processo de aculturação que acontece no Brasil há mais de um século, quando as primeiras famílias japonesas imigraram para cá.
As primeiras colônias japonesas no Brasil, que começaram a chegar por aqui a partir de 1908, usavam os mangás como material de alfabetização e reforço de leitura e escrita dos kanji japoneses. Assim, mesmo do outro lado do planeta, essas colônias conseguiram manter viva sua a língua e cultura materna nos descendentes nascidos e criados em solo brasileiro.
Com o passar dos anos, parte dessa comunidade se fixou no bairro da Liberdade, na cidade de São Paulo, e foram surgindo sebos que vendiam publicações nipônicas como jornais, revistas e os próprios mangás no idioma original. Esse tímido mercado foi ganhando cada vez mais força e, a partir da década de 1960, alguns autores nipo-brasileiros passaram a produzir suas próprias histórias, como os artistas Paulo Fukue (Sanjuro, O Samurai Impiedoso) e o mestre do horror e erotismo Julio Shimamoto (Sombras).
Mas qual foi o primeiro mangá japonês publicado no Brasil?
Após a revolução estética e mercadológica nas publicações, o primeiro mangá traduzido e publicado em larga escala no Brasil foi da editora Cedibra, em 1988. A obra em questão era Lobo Solitário, um seinen de 28 capítulos, criado por Kazuo Koike e pelo ilustrador Goseki Kojima.
A obra conta a história de Itto Ogami, ex-executor do Xogum, que carrega seu filho Daigoro numa jornada para se vingar do clã Yagyu, que matou sua mulher. Atualmente, esse mangá é publicado no Brasil pela Panini. Foi também entre os anos 1980 e 1990 que alguns animes como Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco, Yu Yu Hakusho e Akira marcaram toda uma geração no Brasil, fazendo mais e mais pessoas se interessarem pela cultura asiática e, consequentemente, pelos mangás.
E mangá fora do japão também é mangá?
Todo esse processo e o surgimento de mangakás brasileiros levanta uma interessante questão: é possível produzir uma boa edição de mangá fora do Japão? Para responder essa questão falamos com o professor e pesquisador Nobu Chinen. Segundo ele, a resposta não é uma questão sobre o material ser bom ou ruim. “Sempre me intrigou o fato de os mangás, tão carregados de elementos pertinentes à cultura japonesa, fazerem um sucesso desses no ocidente. Há algumas metáforas visuais que só quem é criado dentro da cultura japonesa seria capaz de compreender, mas mesmo com essas barreiras, o mangá se tornou um fenômeno mundial. Dessa forma, para um autor que não está imerso na cultura japonesa, seus mangás terão alguma perda”, explicou em entrevista ao Omelete.
Chinen compara a criação de uma mangá com a preparação de um prato tipicamente oriental. “Acredito que fazer mangás fora do Japão seja comparável a preparar um prato japonês com os ingredientes ocidentais, ou seja, o resultado sempre terá algo de diferente. E não há nada de muito errado nisso, a não ser quando fazem sushi com cream cheese, manga ou coisas do tipo. Mas, mesmo assim, tem gente que coma essas coisas, então se tiver quem leia um mangá que não seja integralmente japonês, está tudo bem. É uma cultura influenciando a outra”.
Além do contexto sócio-cultural dos autores citado por Chinen, os mangás japoneses se destacam diante das histórias em quadrinhos ocidentais por terem uma narrativa única e acelerada. Com mais imagens do que textos nas páginas, a mente absorve as histórias de maneira mais rápida. Também por esses motivos, alguns elementos das histórias podem acabar passando despercebidos aos olhos de quem está fora da cultura leste-asiática, como explica o pesquisador: “Em termos de materialidade narrativa, digamos assim, o mangá é muito mais centrado na imagem, com pouco ou nenhum texto em cada quadrinho. Uma página é feita para ser lida em poucos segundos”.
Ele continua: “Dessa forma, o ritmo de leitura é mais dinâmico. Também há um uso intenso de onomatopeias de uma forma mais orgânica, até porque os caracteres silábicos (katakanas), normalmente usados com essa finalidade, têm uma função visual. Naturalmente, como há muitos estilos de mangá, alguns se aproximam mais e outros menos da forma narrativa ocidental”.
E quais são os tipos de mangá?
Depois de aprender tudo isso, vem a grande questão: como escolher o mangá perfeito para mim? Essa é uma pergunta muito aberta, se pensarmos na infinidade de estilos e histórias contadas pelos mangás hoje em dia. Ainda assim, é possível limitar essa busca procurando títulos se determinadas demografias. No Japão, os mangás são publicados em editoras focadas em públicos específicos, como garotos, meninas, homens e mulheres.
Com essa divisão, temos alguns estilos mais característicos para cada uma. Vale notar, no entanto, que essas demografias não definem o gênero da publicação. Basicamente, se um mangá é publicado na Weekly Shonen Jump, a revista focada em meninos mais famosa do Japão, ele será considerado um shonen, independentemente de ser ação, comédia, terror ou drama. Ainda assim, listaremos algumas características comuns de cada demografia.
- Shonen: a tradução mais direta para essa demografia seria garoto. Os mangás shonen focam em histórias de superação, em geral, de personagens masculinos. Esses protagonistas quase sempre têm um sonho para alcançar e precisam superar os próprios limites e inseguranças para alcançá-lo. Os títulos de ação mais populares são publicados como shonen, entre eles Naruto, Dragon Ball, One Piece, My Hero Academia e mais. Porém, vale lembrar que a demografia shonen não se limita a histórias com batalhas. Também entram na lista histórias de esporte, ficção científica e até terror.
- Shoujo: e se shonen é mangá para garotos, as meninas possuem o shoujo para chamar de seu. Essa demografia é marcada especialmente por histórias de romance, mas não se limita a isso. Há muitas histórias de ação e aventura na demografia, como Cardcaptor Sakura e Sailor Moon. O que leva o público-alvo de uma história a ser considerado feminino são vários fatores, como a presença de comédias românticas, foco em diversos tipos de relacionamento e a exploração de sentimentos humanos. Mas ainda assim, a regra permanece: foi publicado em uma revista shoujo, ele é shoujo.
- Seinen: e depois das demografias para meninos e meninas, temos um estilo de mangá voltado para o público masculino adulto. O seinen mescla os pontos fortes do shonen e do shoujo, mas leva as histórias para contextos mais complexos, geralmente envolvendo política, guerra e dilemas cotidianos. Entre os vários mangás publicados com essa demografia temos alguns amplamente conhecidos, como Berserk, Akira, Vagabond, Vinland Saga, Monster e Kingdom.
- Josei: O josei vem para suprir o olhar mais femenino nas histórias adultas. Dando um tom mais maduro às histórias já demografadas como shoujo, os títulos publicados nessa demografia costumam trazer personagens mulheres para o centro da história. Entre os exemplos temos Nana, Paradise Kiss, My Broken Mariko, Tomie e mais.
E em quais formatos os mangá são publicados?
Bom, dificilmente você vai encarar uma situação em que saber o formato de impressão de um mangá será determinante. Ainda assim, vale a pena citar os formatos mais comuns usados no Brasil, considerando que é comum ouvir alguns desses nomes vez ou outra.
- Tankoubon: mangás em volume único, que não fazem parte de uma coleção. Esse formato costuma ter cerca de 200 páginas, mas não há regras para esse número nem para as dimensões.
- Bunkobon: mangás em formato livro de bolso/brochura. Em geral, publicações one-shot são lançadas nesse formato por ser menor e mais econômico para as gráficas.
- Bunkoban: um formato menor que o convencional de determinados títulos. Essa versão vem em uma qualidade que visa baratear a publicação.
- Wideban: são os mangás grandões, alguns em formato A5. Porém, o número de páginas pode variar de título para título.
- Kanzenban: uma versão geralmente maior que o tankoubon. Nesse formato, o mangá conta com conteúdos extras.
- Shinsouban: são os relançamento e reimpressões. Esses mangás costumam vir com capas novas ou outros detalhes que os diferenciam da edição original.
- Aizouban: o formato mais caro de impressão que um mangá costuma receber e costuma ser chamado de edição de colecionador. Além da melhor qualidade do papel, ele conta com todos os materiais extras e exclusivos.
Agora você já sabe tudo sobre as origens dos mangás, como eles se popularizaram no Brasil e a diferença entre cada demografia e formato de publicação. Então, seu próximo passo é encontrar o título ideal para você e mergulhar no maravilhoso mundo dos quadrinhos japoneses.