Acompanharia um triângulo amoroso formado por uma protagonista cheia de atitude, um rapaz com conflitos familiares e sua ex-namorada guiada pelo rancor de seu relacionamento fracassado? Escrevendo assim parece até uma sinopse qualquer de novela da Globo, talvez até uma temporada de Malhação, mas estamos falando de InuYasha: o rapaz é um meio-youkai selado numa árvore, a protagonista é uma estudante japonesa transportada para a época feudal e a ex obsessiva é a reencarnação de uma sacerdotisa cuja alma foi inserida em um corpo de barro.
O anime InuYasha, um dos maiores sucessos de Rumiko Takahashi (autora de Urusei Yatsura e Ranma ½), chegou à Netflix em grande estilo - com áudio tratado e dublagem inédita de trechos nunca antes exibidos no Brasil - e agora mais pessoas poderão entender o fascínio que as aventuras do demônio japonês em busca de sua vingança contra o cruel Naraku. Com características ideais para conquistar o público latino fã de porrada e melodrama, InuYasha ainda é um anime obrigatório.
Shonen de lutinha com drama
Além de ser uma das principais autoras de mangá no Japão, Rumiko Takahashi é também conhecida por trabalhar muito: desde 1978 a mangaká produziu diversos mangás semanais de longa duração, emendando um trabalho no outro e às vezes produzindo histórias de forma simultânea. Sua especialidade são as comédias românticas quase burlescas, recheadas de personagens excêntricos interagindo entre si com suas particularidades absurdas: Urusei Yatsura gera situações cômicas ao misturar personagens alienígenas com humanos com sérios desvios de caráter, já Ranma ½ atinge o ponto certo do humor ao criar estilos de combate absurdos, como a degustação marcial ou a patinação artística rítmica marcial.
Por colocar essa característica mais cômica em seus trabalhos mais famosos, InuYasha deve ter surpreendido os otakus japoneses quando começou a ser publicado na Shonen Sunday semanal: a história até tinha lá seus momentos leves e descontraídos, mas trazia uma história com mais aventura, combate e, acima de tudo, drama. Tudo começa quando a adolescente japonesa Kagome (chamada de “Agome” pela nossa dublagem, temos até um texto sobre animes com personagens que o Brasil batizou com outro nome) cai em um poço seco localizado no fundo do templo onde mora com a família.
O acidente a transporta para a época feudal japonesa, e lá Kagome testemunha diversos youkais (demônios) que tentam roubar a Joia de Quatro Almas, um item poderoso que estava dentro de seu corpo. Como as habilidades de luta de uma adolescente japonesa típica não são o bastante para enfrentar criaturas como uma Mulher Centopeia gigante, ela decide despertar InuYasha, um demônio selado em uma árvore por ter causado morte e desgraça tempos atrás. Uma sucessão de confusões acontece e a tal joia se estilhaça em dezenas de pedaços que se espalham pelo mundo, agora cabendo a essa dupla improvável a missão de reunir todos os fragmentos.
Como manda a cartilha do bom shonen de lutinha, a dupla InuYasha e Kagome reúne um grupo de companheiros nessa jornada pelos pedaços da Joia de Quatro Almas: o pequeno youkai raposa Shippou, o monge pervertido Miroku (chamado de “Mirok” no Brasil por… você deve imaginar) e a exterminadora de youkais Sango. No decorrer dos episódios descobrimos que todos esses personagens, em maior ou menor grau, estão unidos pelas maldades do grande vilão da história, o traiçoeiro Naraku (que aqui no Brasil ficou como “Narak” mesmo, como podem imaginar).
Há outras peças importantes nessa aventura ambientada no período dos youkais japoneses, como Sesshoumaru - irmão de InuYasha que é também um youkai não mestiço - e Kikyou, a ex-paixonite do personagem título que faleceu artimanhas de Naraku e agora, revivida, tem um plano de vingança. E embora boa parte do elenco tenha poderes impressionantes e capacidade de lutar, a grande graça de InuYasha está nos conflitos emocionais de seus personagens, e é justamente nisso que a série se distancia dos shonen de lutinha tradicional.
Uma novela em formato anime
Acompanhar um Naruto ou One Piece da vida é saber que teremos um desenvolvimento daquele mundo, mas não necessariamente dos personagens. Mesmo que One Piece ainda dê algum destaque na relação interpessoal de amizade entre os personagens, o objetivo do Eiichiro Oda atualmente é trabalhar aquele universo ficcional a nível mundial, com grandes guerras e conflitos que afetarão todas as pessoas ao mesmo tempo. Já InuYasha tem a figura do vilão Naraku, lutas e golpes de nomes estilosos, mas Rumiko parece se divertir mesmo contando histórias dramáticas entre seus personagens.
A trama de InuYasha dá bastante destaque para o triângulo amoroso InuYasha/Kagome/Kikyou, até por ser algo muito melodramático. InuYasha e Kikyou eram apaixonados no passado, pelo menos até a sacerdotisa ajudar um moribundo chamado Onigumo. Este se apaixonou perdidamente por Kikyou e realizou um pacto com vários youkais para conseguir a força necessária para separar o casal. Com isso ele se torna Naraku, um ser com uma maldade elevadíssima num mesmo corpo. Após uma armadilha causada por mentiras de Naraku, Kikyou acabou sendo enganada e selou seu amado InuYasha na árvore sagrada com uma flecha, acreditando que ele havia traído sua confiança. Com essas reviravoltas, conflitos amorosos e uma trama que vai se arrastando por (muitos) capítulos, InuYasha acaba sendo algo muito próximo… de uma novela.
Sabe uma história bem básica, que vai se desenrolando de forma lenta e explorando ao máximo todos os conflitos e dramas dos personagens em mais de 100 episódios? É um pouco disso. Às vezes o youkai do dia serve apenas como justificativa para Kagome ficar insegura sobre o que InuYasha sente a seu respeito, ou para Sango sofrer o enésimo dilema moral de exterminar ou não seu irmão que foi tomado pelo Naraku. Isso porque nem comentei como os vilões também têm seus dilemas e momentos de rebeldia, algo que enriquece a obra.
Outro ponto de interesse da trama de InuYasha é a Joia de Quatro Almas: um pequeno fragmento é capaz de aumentar o poder de um youkai, então muitos estão atrás disso. InuYasha se mostra interessado na joia pela possibilidade de se tornar um youkai completo, mas no decorrer da situação amorosa com Kikyou vamos descobrindo que era o oposto: o meio-youkai queria se tornar um humano completo para poder ficar com sua amada.
Infelizmente o jeitão de novela também vem com alguns pontos negativos. InuYasha é uma obra longa e arrastada, com alguns padrões sendo repetidos de tempos em tempos. O protagonista esteve perto de acabar com a vida de Naraku várias vezes, mas foi surpreendido com a fuga do vilão. Além de muitos fillers, algo esperado de um anime do começo dos anos 2000, InuYasha inova ao animar “fillers canônicos” - histórias e arcos presentes no mangá, mas que fazem a história rodar em círculos e sem qualquer utilidade.
O Brasil ama InuYasha
O público da América Latina tem uma predileção muito única pelo gênero melodramático, e esse é um dos motivos pelos quais animes fizeram sucesso por aqui. Acompanhar uma história se desenrolando em vários capítulos é uma coisa muito natural para nossa cultura, e os animes com forte foco em histórias dramáticas como Os Cavaleiros do Zodíaco e InuYasha acertaram em cheio o gosto deste público.
InuYasha primeiramente chegou ao Brasil por meios alternativos, mas logo foi lançado por vias oficiais. O mangá foi anunciado e lançado pela editora JBC durante o Animecon 2002, e a presença espontânea de muitos cosplayers do meio-youkai no evento já provaram que a história era um sucesso. Meses se passaram e o anime foi lançado na programação do Cartoon Network e, logo depois, teve seus primeiros 26 episódios exibidos na grade infantil da Globo. A exibição na TV aberta veio cheia de polêmicas, pois o anime era forte demais para ser transmitido na TV Globinho, e olha que a nossa versão já vinha com muitas censuras da versão latina (a Mulher Centopeia do primeiro episódio, por exemplo, ganhou um “sutiã”). A emissora de Roberto Marinho precisou afiar sua tesoura e sair cortando as muitas cenas de sangue jorrando e insinuações sexuais.
Mas assistir a InuYasha no Brasil foi bastante complicado para os fãs: o anime tinha um lançamento inconstante de episódios, e a ótima dublagem do início foi decaindo de qualidade com muitas mudanças de vozes e traduções estranhas. Por fim, o Brasil ficou sem ver o “final” da história: os últimos episódios do anime não foram dublados na época e ficaram de fora do Cartoon Network. Não que isso tenha afetado nossa compreensão, porque o final do anime nem ao menos era a conclusão da história, e sim um ponto final que o estúdio Sunrise colocou quando decidiram interromper a animação. O verdadeiro fim, com o desfecho criado pela autora na versão em quadrinhos, ganhou versão animada em InuYasha Final Act, uma série extra com 26 episódios inéditos em português.
Felizmente parece que o Brasil terá a chance de ver o final de InuYasha em português pela primeira vez. Embora o anime já estivesse disponível por completo no Prime Video (com a versão latina, cheia de pequenas censuras), a versão que chegou na Netflix promete entregar para a gente a experiência completa de InuYasha. Foram lançados até o momento cerca de 80 episódios, mas posts de dubladores já insinuam que todos os episódios foram dublados desta vez. Além deles, as prévias de capítulo também foram dubladas e aparecem ao final de cada episódio de InuYasha na Netflix. Infelizmente as canções em português que muitos guardam no coração ficaram de fora por motivos de licenciamento, mas é uma oportunidade para os fãs conhecerem as versões originais, todas de bandas de muito sucesso no Japão.
Tenho uma relação de amor e ódio com InuYasha, porque ao mesmo tempo que eu considero um anime exageradamente arrastado, o carisma irresistível dos personagens criados pela Rumiko Takahashi não me deixam desgostar da obra. Se você tem dúvida sobre ver ou não esse anime, até por ser uma produção mais antiga, recomendo dar play no primeiro episódio e se deixar levar por um anime descompromissado, dramático e muito cativante.
Como assistir InuYasha?
Há duas formas oficiais de assistir a InuYasha no Brasil. A série (com dublagem em português e possibilidade de ouvir com o áudio original) acabou de chegar na Netflix, mas incompleta até o momento de publicação dessa matéria. Já no Prime Video há a possibilidade de ver o anime completo, mas com qualidade de imagem inferior e com censuras. Os episódios finais do Final Act também estão aqui, mas com dublagem em espanhol.
Já o mangá está sendo relançado por aqui pela editora JBC, agora em formato mais luxuoso.