Cena de As Marvels (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena de As Marvels (Reprodução)

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Digam o que quiserem, mas As Marvels é a adaptação de HQ mais fiel do MCU

Nia DaCosta e sua equipe capturaram as aventuras de Carol Danvers perfeitamente

Omelete
5 min de leitura
20.11.2023, às 16H06.
Atualizada em 27.02.2024, ÀS 08H25

Para o Caio de 10 anos de idade, em meados dos anos 2000, comprar as revistas da Marvel era uma oportunidade de escapar para um mundo com seres superpoderosos voando por aí, claro, mas também uma oportunidade de acompanhar esses personagens em uma história na qual ele pudesse se espelhar. O fim da infância e começo da adolescência é frequentemente definido como um “período de transformações”, mas acredito que seja ainda mais certeiro dizer que ele é um “período de dúvidas”. Tantas dúvidas, e tão voltadas para dentro de si.

Os heróis da Marvel, cada um de sua forma, encarnavam essas dúvidas à perfeição - afinal, é o paradigma da nerdice dizer que a Casa das Ideias tem seu diferencial na humanização dos super humanos que povoam suas páginas. E, para o Caio de 10 de idade, nenhum deles era mais desesperadamente identificável do que Carol Danvers.

Na época, Carol era a Ms. Marvel, e suas aventuras intergalácticas eram pontuadas por um monólogo interno que talvez até mirasse na trivialidade de um diário adolescente, mas acertava no coração das dúvidas que me atormentavam. Carol tinha dúvidas sobre o seu valor como heroína, sim, mas elas se desdobravam em outras: dúvidas sobre quanto de sua própria identidade era autodefinida, e quanto era ditada pelas regras ditas e não ditas do mundo ao seu redor; dúvidas sobre sua capacidade de se relacionar com colegas de time, amigos e interesses amorosos sem deixá-los ver a multidão de dúvidas que, ela achava, a tornavam uma aberração em meio a seres (humanos ou não) perfeitamente bem ajustados.

Que angústia absoluta - e absolutamente perfeita - era vê-la se digladiar com essas dúvidas e errar feio por causa delas, que triunfo era sentir que ela continuava sendo a heroína de sua própria história enquanto tentava reparar o que se tornou quase irreparável por sua própria impulsividade, teimosia, cinismo. Para quê servem as histórias de super-herói, se não para nos dizer que todos temos esse valor, mesmo diante de todos nossos erros?

Carol Danvers durante a fase Ms. Marvel, em 2006 (Reprodução)
Carol Danvers durante a fase Ms. Marvel, em 2006 (Reprodução)

A Carol Danvers que surgiu nos cinemas em 2019, com o rosto de Brie Larson, não era essa que o Caio de 10 anos acompanhava nos quadrinhos, exatamente, mas uma extensão lógica dela, nascida também nas revistas da Marvel (que eu só fui redescobrir mais tarde). Especificamente, ela surgiu quando a roteirista Kelly Sue DeConnick assumiu a personagem, em 2012, abrindo para ela a possibilidade de se libertar da circunstância sufocante de heroína que “roubou a identidade” de um homem. DeConnick, enfim, reconstruiu a origem de Carol para reafirmar o poder que ela carrega e especular o que ela pode fazer com ele, agora que é capaz de entendê-lo e controlá-lo.

Quem assistiu a Capitã Marvel deve ter percebido que a frase acima é um bom resumo do arco da protagonista no filme. E que experiência catártica foi, para o Caio de 25 anos, ver aquela personagem em quem ele tão dolorosamente se espelhou em uma época tão cheia de dúvidas se livrar de suas amarras em plena tela grande. Inegável, no entanto, que a missão de As Marvels como narrativa era ainda mais complicada: Nia DaCosta e seus parceiros criativos precisavam provar que a Carol da fase atual do MCU segue sendo uma personagem que vale a pena acompanhar - que ela ainda tem muito o que resolver não sobre o universo, mas sobre si mesma.

Ainda bem que DaCosta e cia. estavam à altura do desafio, e conheciam muito bem o material em que estavam mexendo. As Marvels mantém intacta essa humanidade latente que faz de Carol, mesmo sendo a entidade mais poderosa do MCU, uma protagonista tão compulsivamente assistível. Lembra alguns parágrafos acima, quando eu disse que parte do charme da (agora sim) Capitã Marvel era vê-la tentar reparar o dano irreparável que ela mesma causou? Bom, As Marvels confronta a heroína com esse dilema tanto em um sentido cósmico (com a emergência climática no império Kree) quanto em um sentido pessoal (com a relação fraturada entre ela e Monica).

Adicione a essa mistura a empolgação de uma literal adolescente, a Ms. Marvel (Iman Vellani), e você tem um arco que explora as consequências das escolhas de uma mulher dotada de poder inimaginável enquanto reafirma a sua primazia para tomar decisões sobre o próprio futuro (que nem sempre serão as certas, e está tudo bem). O filme é delicadamente sentido na forma como modula a adoração de Kamala por Carol, deixando claro que a Capitã Marvel não existe como parágono de perfeição para ela, mas como exemplo de humanidade - exatamente como ela existia para mim, todo aquele tempo atrás. 

Park Seo-joon em As Marvels (Reprodução)
Park Seo-joon em As Marvels (Reprodução)

Igualmente brilhante é a forma como As Marvels traz para as telas um aspecto dos quadrinhos de Carol Danvers que tinha se mostrado só timidamente em Capitã Marvel. Já lá em meados dos anos 2000, estavam nas páginas de Carol as verdadeiras space operas do universo Marvel - pulando de planeta e planeta, de cultura inventada em cultura inventada, elas não tinham nenhum pudor de abusar de cores e traços elaborados para diferenciar essas culturas e realçar o aspecto pulp da coisa toda. 

Nessa modernização do melodrama intergaláctico de um John Carter, elas eram aventuras muito mais divertidas do que a média da época nos HQs, dominada por tons narrativos mais sóbrios e estilos de desenho impressionistas. As Marvels chega em um momento similar para o cinema de super-herói, e propõe ao espectador sem paciência para o visual uniformemente tedioso do MCU um conceito de “filme de boneco” diferente, que abre o jogo sobre a própria artificialidade sem abrir mão do impacto narrativo. O longa de DaCosta é todo movimento, todo feito de escolhas bem humoradas e ágeis, um bálsamo para quem se acostumou com o peso indevido do subgênero.

Por isso é de quebrar o coração perceber que o público não comprou As Marvels, seja por qual motivo for. Para um nicho que diz se importar tanto com a fidelidade de suas adaptações para o cinema, os fãs de quadrinhos não terem abraçado este filme demonstra uma seletividade decepcionante quanto a quais histórias eles estão salvaguardando. Isso na melhor das hipóteses, porque a pior - talvez, mais provável - é que a dominância cultural do MCU tenha transformado a percepção do que se qualifica como uma boa história de herói, ou uma boa adaptação de HQs, de forma tão definitiva que a fidelidade ao original importa menos do que a aderência a um paradigma inventado no cinema, e para o cinema.

E isso, convenhamos, já não é coisa de fã de HQs.

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