A Marvel nunca teve receio em mudar o material-base nas suas adaptações e, não por acaso, em muitas ocasiões simplificou os vai-e-vens (às vezes bastante rocambolescos, convenhamos) dos quadrinhos quando levou seus heróis para a telona. Com Eternos, seu mais recente lançamento, não foi diferente. Nas mãos da diretora Chloé Zhao, a equipe criada por Jack Kirby nos anos 1970 passou por algumas reconfigurações -- e, veja, não só no quesito gênero de personagens ou paleta de cores. Embora, de fato, a cineasta tenha trazido mais diversidade ao seu elenco e substituído os tons vibrantes característicos de Kirby por cores mais pastéis, Zhao e o time de roteiristas foram além e fizeram pequenas alterações na própria origem de Eternos, Deviantes e humanos.
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(Antes de salientar quais são elas, vale dizer o óbvio: tratando-se de uma adaptação, mudanças fazem parte do jogo, seja para tornar a obra mais contemporânea, seja para se adequar ao estilo do seu “novo autor” -- como foram as duas já mencionadas. No caso da Marvel, isso por vezes quer dizer também cumprir os requisitos do seu plano a longo prazo, ou se encaixar no que já foi desenvolvido até aqui. Provavelmente, esse último é o principal motivo para a simplificação a que me refiro neste texto).
Quando Sersi (Gemma Chan) herda de Ajak (Salma Hayek) o posto de Eterna Primordial, o Celestial Arishem revela a verdadeira origem da sua espécie. Olympia, seu planeta natal (e do qual sentia saudades), nunca existiu. Na realidade, Eternos e Deviantes foram criados artificialmente pelos Celestiais para servir a um único propósito: ajudar a trazer ao universo um novo ser cósmico. A Terra era, portanto, o “casulo” de Tiamut, o Celestial da vez. E as raças inimigas há milênios? Bem, eram apenas peças da mesma engrenagem.
Os Deviantes, como verdadeiras bestas, eram enviados para eliminar quem quer que ameaçasse o desenvolvimento livre de vida. Afinal, era a proliferação desses seres que serviria de combustível para o despertar do Celestial. Mas, uma vez que os predadores eram eliminados, justamente os seres essenciais para sua missão viravam seus alvos. É por isso que os Celestiais criaram os Eternos: para proteger as pessoas da ameaça que sobrou.
Nas páginas de Kirby, porém, Deviantes, Eternos e humanos compartilham o mesmo antepassado. Isso porque, quando os deuses vieram para a Terra pela primeira vez, eles capturaram uma espécie de primata e fizeram uma série de experimentos com ela usando química cósmica, como explicou o próprio Ikaris na primeira edição da HQ. Desses testes, surgiram os Deviantes, uma espécie fadada à guerra com características físicas instáveis e monstruosas; os humanos, indivíduos estáveis estruturalmente, que poderiam tanto destruir, como construir; e os Eternos, imortais ilesos à passagem do tempo que, como seus próprios criadores, viviam isolados.
Em outras palavras, originalmente, os Eternos não são alienígenas -- ao menos, não mais do que nós seríamos, seguindo essa lógica. Mas esta não é a única grande mudança entre filme e quadrinho. Os Deviantes, ainda que monstruosos, não eram tão animalescos quanto o épico do Marvel Studios os apresenta. Como bem se nota nas primeiras páginas do gibi de 1976, eles eram seres também inteligentes, com capacidade de organização e, mais importante ainda, de desenvolver armas potentes. Há um tanto de pataquadas nos seus planos, é verdade, mas eles sabem os problemas que os Celestiais podem representar. Não à toa, tentaram travar uma guerra contra seus criadores, mas fracassaram e acabaram largados nas profundezas dos oceanos.
De todas as mudanças propostas pela Casa das Ideias no cinema, talvez essa seja a única de fato infeliz. Os Deviantes poderiam ser melhores aproveitados no épico -- no mínimo, dar ao seu líder Kro, senão uma chance de romance com a Thena, como realmente acontece nos quadrinhos, uma personalidade de fato. Como ameaças disformes e com propósito simplesmente destrutivo, não apenas os Deviantes se enfraquecem, como também seu embate contra os Eternos.
Contudo, como são as demais adaptações da Marvel, Eternos é uma chance para que os fãs de cinema se aventurem nas HQs. E o universo criado por Jack Kirby é tão rico que até o mais iniciante dos quadrinheiros deve se interessar.
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Eternos está em cartaz nos cinemas.