Paul Rudd em Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania

Créditos da imagem: Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania/Marvel Studios/Reprodução

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Sem risco ou sacrifício, Homem-Formiga 3 esvazia própria noção de heroísmo

Ironicamente, no filme em que se frisa que se deve defender o “little guy”, a Marvel esquece que não importa o tamanho da ameaça, mas sim o dilema moral

Omelete
6 min de leitura
24.02.2023, às 14H15.
Atualizada em 11.08.2023, ÀS 10H59

[Atenção: o artigo a seguir contém spoilers de Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania]

Se Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania é indício de qualquer coisa sobre o atual momento do MCU é que o heroísmo está oficialmente em crise na Casa das Ideias. E, antes que me interpretem mal, não me refiro à saturação do “gênero”, muito embora ela exista, nem quero dizer que, conceitualmente, as produções centradas em heróis não tenham mais apelo. Seja pelo escapismo de mergulhar em uma experiência completamente diferente da sua, por colocar o espectador com uma vida ordinária se sentindo protagonista de uma aventura ou, ainda, porque depois de 20 anos disso, já nos acostumamos, lá estamos nós, comprando ingressos. São, afinal de contas, histórias sobre sacrifícios físico e emocional, coragem, riscos e dilemas morais. Logo, acompanhar uma pessoa lidando com o peso da responsabilidade de salvar a humanidade, esteja ela representada por uma pessoa ou literalmente uma galáxia, tem tudo para ser cativante, mesmo diante da abundância de títulos.

A crise, no caso, é mais profunda: é sobre o que de fato significa ser um herói. E chega a ser surpreendente que, em um filme cujo ponto de partida seja a confusão de Scott Lang (Paul Rudd) entre seu ego e sua, digamos, função social — ou seja, o que implica ser um Vingador, especialmente em um mundo pós-Blip — isso fique tão evidente.

Desde o trailer, Quantumania promete esse abalo na consciência do ex-detento. Com o sucesso subindo à cabeça — mesmo que ele seja mais uma subcelebridade do que propriamente um astro — e os Vingadores diluídos, Scott perde seu propósito. Ele não tem dificuldades financeiras que o façam se arriscar, nem mais a necessidade de se provar um bom pai. Ele finalmente chegou a um ponto de estabilidade — ou, se preferir, afundou no marasmo que sua vida se tornou. Logo, a ida acidental ao Reino Quântico e seu primeiro encontro com Kang, o Conquistador (Jonathan Majors) funcionam, em teoria, como uma espécie de lembrete de por que ele encarou o Jaqueta Amarela (Corey Stoll) lá atrás ou, ainda, por que ele admira tanto o Capitão América (Chris Evans). Uma espécie de chamado para seu dever enquanto herói.

Não à toa, este é o tema da maioria das suas discussões com Cassie (Kathryn Newton). Enquanto tudo o que ele quer fazer é fugir — e, sejamos justos, proteger sua filha também —, a jovem usa o próprio título do seu livro de memórias, Look Out for the Little Guy, contra ele, e tenta convencê-lo a lutar em nome dos Freedom Fighters. Porque ela pode até não saber socar os adversários, mas, enquanto ativista, tem muito claro que quem tem poder — sobre-humano ou, definitivamente não menos relevante, econômico, midiático, político, etc — deve sacrificar parte do seu conforto para ajudar os menos privilegiados. Essa é, por essência, uma visão clássica do que torna alguém um herói. E Scott, aos poucos, parece reaprender isso. Mas “parece” é a palavra-chave aqui, porque Quantumania inexplicavelmente esvazia o arco do seu herói “em reabilitação” na sua reta final.

É uma questão de minutos. Tão rápido o filme coloca o Homem-Formiga diante da sua maior provação enquanto Vingador e finalmente prova seu heroísmo, Quantumania também se contradiz e frisa que esta figura, que foi caçoada do início ao fim por ter insetos como sidekicks e se dar muita importância, realmente não merece ser levada a sério.

Explico: o herói chega a assumir verdadeiramente o protagonismo no embate contra Kang e, sem auxílio ou tempo para escapar, entende que para ser o herói que a situação exige, ele, Scott Lang, não precisa vencer. Na realidade, a vitória é possível se ele pessoalmente perder. Ou seja, um sacrifício é necessário, e Scott dá esse passo, sem pensar duas vezes: fica para trás, no Reino Quântico, para garantir o sumiço do vilão e, assim, abre mão mais uma vez da sua família. Porém, antes que o espectador possa sentir o peso da sua decisão, celebrar sua conquista e lamentar suas perdas, ele é salvo pela filha e encontra seu “final feliz”.

Ele, porém, não é o único que tem seu arco minimizado pela atual falta de compreensão da Casa das Ideias do que faz um herói. Janet van Dyne (Michelle Pfeiffer) é, na verdade, sua maior vítima. Presa durante décadas no Reino Quântico, a primeira Vespa personifica todo o tema do filme, porque é ela quem fez a escolha moral. Lá atrás, é ela quem abre mão da sua vida para poupar o mundo dos desmandos do Kang e, durante anos, convive com o peso da sua decisão. É ela quem carrega o arrependimento de tê-lo salvo, quando o vilão ainda parecia uma vítima, e deixado a população do Reino Quântico à sua mercê. É ela quem sabe o que precisa ser feito e lidera uma das frentes da investida.

E, veja, o MCU quer que o espectador acredite que Janet é a Vespa a que o título se refere. Mas, no momento mais importante da trama, ele a deixa de escanteio. Pior do que feita de donzela indefesa, ela some, assim como sua relevância e seu senso de responsabilidade no conflito. Seu heroísmo se prova, portanto, utilitário, temporário e — pior que Scott, que teve arcos de desenvolvimento ao longo de cinco filmes — sem importância.

Essa sensação de esvaziamento, embora clara em Quantumania, não é exclusiva dessa sequência. Desde o início da fase 4, os filmes e séries da Marvel têm traduzido sentimentos como pesar, luto e trauma em conflitos de largas dimensões, mas com pouca profundidade emocional. Algumas produções têm mais êxito do que outras, é verdade — Loki, Shang-Chi e She-Hulk sendo as melhores delas. Mas, via de regra, a grandeza não se reflete nos riscos da missão, e a jornada dramática dos personagens é mais projetada do que de fato desenvolvida em tela. No fundo, o que esse novo padrão revela é que a lição que a Casa das Ideias tirou do embate épico contra Thanos (Josh Brolin), bem-sucedido e notável não só como evento, mas também enquanto narrativa, é mais simplista do que se sugeria. Surpreendentemente, não se trata da complexidade do vilão, sua relação com o protagonista ou o conflito. O heroísmo estaria associado quase exclusivamente ao escopo da aventura.

Essa é uma visão muito equivocada. Porque a verdade é que um roubo a uma mercearia de esquina pode ter o impacto de uma guerra multiversal se o roteiro der conta de dar o devido peso para a ação do herói, do criminoso e das vítimas. Não é preciso grandes malabarismos visuais, criaturas de outro mundo ou poderzinho — ainda que sejam, sim, muito bem-vindos. Basta ter certeza do que está em jogo. Uma escolha difícil de verdade e o desenrolar das suas consequências já seriam suficientes para fazer de uma pessoa comum um herói e, portanto, de uma história algo cativante de se acompanhar.

Com a Saga do Multiverso começando a dar passos mais substanciais, esse cenário pode ainda se agravar. Afinal, o multiverso, ainda que uma oportunidade rica de apresentar novos olhares a personagens clássicos, por si só retira da aventura qualquer perigo. Se fulano morrer, outra versão dele aparece. E outra. E outra. Quer dizer, a ameaça pode até ser grandiosa, mas as consequências não — imagine, por exemplo, se Guerra Infinita e Ultimato fossem lançados nesse contexto: sacrifícios como o da Viúva Negra (Scarlett Johansson), do Tony Stark (Robert Downey Jr.) e do Visão (Paul Bettany) perderiam a força.

A mudança abrupta no calendário de lançamentos, inesperada para a Casa das Ideias, pode ser um indício de que a crise foi notada, ainda mais com os claros baques na bilheteria. Mas é algo para prestar atenção ao longo da nova saga. Kang tem tudo para ser uma ameaça tão memorável quanto o Titã Louco, mas, no fim das contas, tudo depende de ter heróis à altura da missão.

A seguir, confira o nosso veredito de Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania:

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