Quem vê o MCU ultrapassar as 30 produções entre TV e cinema após menos de 15 anos talvez nem se lembre, mas a franquia já teve dias de incerteza. Lá em 2008, quando Homem de Ferro chegou aos cinemas, a construção do universo cinematográfico do Marvel Studios era relativamente arriscada. Com exceção do Hulk, que inclusive tem seus direitos ligados à Universal, os personagens que a equipe de Kevin Feige podia usar não eram necessariamente os mais comercialmente populares da galeria da Casa das Ideias. Por mais reconhecíveis que fossem, Thor, Capitão América e Homem de Ferro passavam longe da popularidade de Homem-Aranha, X-Men e Quarteto Fantástico junto ao público geral. E, enquanto Guerra Civil deu uma bela renovada no fôlego do Sentinela da Liberdade e do Vingador dourado nos gibis, usar a dupla como base para uma franquia de filmes multimilionária não parecia a melhor das ideias.
14 anos depois, o cenário é completamente diferente. Contando com uma certeza quase absoluta de sucesso, o Marvel Studios consegue apostar sem medo em adaptações de personagens como Guardiões da Galáxia, Cavaleiro da Lua e Eternos. Por outro lado, criou-se uma impressão no público que qualquer produção que não esteja diretamente ligada aos grandes crossovers do MCU é vazia, com bons trabalhos como Gavião Arqueiro e o recente Doutor Estranho no Multiverso da Loucura sendo criticados por não corresponderem às expectativas de pautar o futuro da franquia ou até de terem seus próprios estilos. Acontece que, ao contrário do que muitos pensam, o melhor do MCU acontece quando a franquia permite estilos diferentes e histórias autocontidas, que desenvolvem um universo de narrativas diversas.
Voltando à Fase 1, não é exagero afirmar que apenas Homem de Ferro consegue ser um filme ótimo. O Incrível Hulk e Thor, por exemplo, eram, no máximo, medianos, enquanto Homem de Ferro 2 e Capitão América: O Primeiro Vingador foram apenas prelúdios de luxo para Vingadores (que também é incrível). Coincidentemente, o filme que deu o pontapé inicial do MCU é também o único dessa primeira leva a trazer uma história fechada em si. Mesmo que deixasse o caminho aberto para sequências, o longa de Jon Favreau só foi realmente referenciar um universo maior em sua única cena pós-créditos (lembra como elas eram raras?).
Desse ponto em diante, tornou-se rotineiro que todos os lançamentos do Marvel Studios a partir de 2013 servissem muito mais como uma expansão da narrativa dos Vingadores do que a apresentação de novos personagens. Filmes como Homem de Ferro 3, Doutor Estranho, Homem-Aranha: De Volta ao Lar, Viúva Negra e Capitão América: Guerra Civil preteriram o desenvolvimento de seus protagonistas por ligações e referências ao restante do MCU e, embora tenham tido sucesso nas bilheterias, devem muito em qualidade quando comparados a histórias mais fechadas, como Capitão América: O Soldado Invernal, Thor: Ragnarok, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis e até os divisivos Gavião Arqueiro e Eternos. Estes últimos, aliás, são também os títulos em que a marca de seus criadores está mais em evidência, saindo sempre que possível da receita pronta que permeia a maioria das produções de Feige.
É claro que esse extenso catálogo também dá espaço para exceções. Guardiões da Galáxia, por exemplo, está diretamente ligado a Vingadores: Guerra Infinita, mas ainda assim é um filme excelente e um trabalho respeitável de James Gunn como diretor e roteirista. Já o isolado Homem-Formiga, dirigido por Peyton Reed, até diverte, mas é possível sentir cada um dos problemas de bastidores que assolaram a produção, inicialmente comandada por Edgar Wright.
Os problemas da sinergia épica
Há uma necessidade gigantesca dentro do MCU de que todas as produções se conectem e se complementem sempre que possível. Essa sinergia obrigatória causou mudanças problemáticas em alguns dos personagens mais importantes da Marvel, cujas características básicas foram ignoradas em prol de um maior envolvimento dos “nomes fortes” da franquia cinematográfica. O Homem-Aranha de Tom Holland, por exemplo, viu dois de seus três filmes girarem mais em torno de Tony Stark (Robert Downey Jr.) e seu legado que das responsabilidades do Cabeça de Teia, descaracterizando mais Peter Parker do que qualquer outra adaptação. Ainda assim, o fato de De Volta ao Lar e Homem-Aranha: Longe de Casa se ligarem diretamente aos acontecimentos do MCU renderam aos longas uma boa vontade que outros títulos da franquia não tiveram.
Homem-Formiga e a Vespa, por exemplo, é um filme muito mais consistente que qualquer um dos longas da trilogia mais recente do Aranha, mas foi praticamente ignorado pelo público por sua aparente falta de ligação ao então recém-lançado Vingadores: Guerra Infinita. O mesmo pôde ser observado em Gavião Arqueiro. Por mais que adapte - muito bem, por sinal - um dos quadrinhos mais vendidos e premiados da década passada, o isolamento e o humor inerentes à história são frequentemente usados para diminuir os méritos da minissérie. Entre outras coisas, a produção introduziu e desenvolveu Kate Bishop (Hailee Steinfeld), enfim deu um arco minimamente decente para Clint Barton (Jeremy Renner) e reintroduziu Wilson Fisk (Vincent D’Onofrio) ao MCU.
A limitação do escopo das aventuras retratadas é o ponto mais forte até nas produções mais medianas. Cavaleiro da Lua pode ter pecado ao não mergulhar como poderia em sua premissa insana, mas a série divertiu ao explorar um canto isolado da franquia, desconectado do grande plano de Feige e sua equipe. Por mais que escorregue em elementos-chave, a produção conteve sua narrativa aos seus seis episódios e, como Homem de Ferro lá atrás, só foi sugerir uma continuação em sua cena pós-créditos.
Por um MCU mais “dividido” no futuro
Por mais numerosas que sejam as teorias apocalípticas que decretam a “morte” do MCU em um futuro próximo, a galeria de personagens da Casa das Ideias é gigantesca e, com ou sem a “fórmula Marvel”, ela pode alimentar a franquia por, no mínimo, mais uma década. E, foque ou não nos grandes eventos, é difícil imaginar um cenário em que o Marvel Studios perca de vez seu apelo com o público.
Há, no entanto, compreensível preocupação em ver os icônicos nomes da Marvel terem sua complexidade e personalidade diluídas ao irreconhecimento por causa da aparente obrigatoriedade criada por Feige e pelo público geral de que tudo esteja conectado. Essa homogeneidade forçada, por exemplo, já causou a mudança na forma como Kamala Khan, uma das personagens mais populares da editora atualmente, será retratada em Ms. Marvel. Por mais otimista que os fãs estejam com a atuação de Iman Vellani, é difícil não ficar com o pé atrás com a alteração de elementos tão importantes da heroína.
Por mais que seja incrível presenciar os eventos épicos de longas como Vingadores: Ultimato ou Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa, é em histórias menores, como Gavião Arqueiro e Multiverso da Loucura, que esses personagens realmente se tornam identificáveis. É nelas que suas personalidades, virtudes e até falhas de caráter são melhor trabalhadas, de forma que inclusive enriquece os eventuais crossovers que o estúdio tem programado.
Mesmo que não seja um consenso, a força da Marvel nunca esteve resumida em seu universo interligado, mas sim nas várias vozes e estilos que moldaram seus personagens e histórias através das décadas. Uma separação maior das produções “solo” dos filmes-evento bilionários permitiria maior engajamento emocional do público quando essas histórias se cruzassem.