“Qual é a responsabilidade daqueles com poder?”, questiona Jennifer Walters (Tatiana Maslany), encarando o espectador olho no olho, tão logo She-Hulk: Defensora de Heróis começa. “Eles têm a obrigação de se abster do uso indevido desse poder ou têm o dever de proteger quem não o tem?”. As perguntas são inegavelmente pertinentes, quer você esteja discutindo influência política e financeira no mundo real ou, dentro do contexto do MCU, certas aptidões sobre-humanas — e o Tratado de Sokovia está aí de prova. Porque, como bem sintetizou o Tio Ben em todas as mídias possíveis, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades”, e isso independe da natureza de tais recursos.
No caso da nova série do Marvel Studios, estas questões se referem, acreditem, ao primeiro cenário, já que são parte dos argumentos finais que a advogada apresentará ao júri — e, por isso, ela as pratica não para o público de casa, mas para seus colegas de trabalho. Porém, verdade seja dita: Jennifer Walters bem que poderia dizer tais palavras para si mesma, diante de um espelho. Quando a She-Hulk faz sua estreia na telinha, ela já passou por toda a transformação que mudará sua vida para sempre e, sem saber como lidar com todas aquelas habilidades recém-adquiridas, ela as nega. Afinal, o que fazer agora que é verde e superforte: proteger os outros ou se abster?
Curiosamente, a saída inicial da nova heroína é uma mistura de ambos. Ignorando os conselhos do primo Bruce Banner (Mark Ruffalo), que propõe uma mudança drástica de carreira, ela protege as pessoas da melhor maneira que sabe: através das leis. Sim, She-Hulk é mesmo uma série de TV de advogados e, como é tradicional no gênero, ela dedica um episódio para cada caso. Mas, o que poderia soar como desinteressante ou engessado para o espectador do MCU, habituado a conflitos físicos em escalas interdimensionais, se prova um achado. Aliás, não seria exagero algum dizer que, com base nesse começo de temporada, a obra encabeçada pela roteirista e produtora Jessica Gao está entre as melhores produções que a Marvel fez em anos, senão na sua história. Estamos diante de uma série engraçada e divertida, e apenas começando a conhecer uma protagonista que não poderia ser mais cativante.
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A Jennifer Walters de Tatiana Maslany encapsula tudo o que tornou a She-Hulk uma personagem tão adorada das HQs. Ela é sarcástica e autorreferente, ao mesmo tempo que é determinada e leva seu trabalho a sério. Mas, tão importante quanto, ela se apresenta como uma pessoa de verdade, e sua hesitação em assumir esse papel de super-heroína é um grande exemplo disso. Ela batalhou por tanto tempo para ser reconhecida como advogada, contornando os machismos diários de qualquer ambiente de trabalho, e vai jogar tudo para o alto por mudanças físicas que ela sequer concordou? Para salvar o mundo com os punhos e, nos intervalos, dar entrevistas para a TV? Não, obrigada.
Nesse sentido, She-Hulk apresenta um novo olhar para o MCU, menos grandioso, mas nem por isso menos épico. Até porque está nas banalidades do dia-a-dia alguns dos seus principais atrativos — e os numerosos teasers já deram uma prévia disso, revelando desde as desventuras da heroína nos aplicativos de namoro até sua amizade genuína com Nikki (Ginger Gonzaga). Essa abordagem traz novas perspectivas, inclusive, de velhos conhecidos dos fãs. Bruce, por exemplo, se revela uma pessoa bastante competitiva, incapaz de aceitar que sua prima demorou dias para dominar algo que lhe custou anos — o que rende uma ótima dinâmica de provocações e afeto entre eles. Já Wong (Benedict Wong) tem outro hobby além das lutas clandestinas e karaokês: ele ama o sossego de maratonar séries de TV no conforto do Kamar-Taj. Esses detalhes, além de aproximarem o espectador dos ídolos que por anos ele colocou num pedestal, dão o tom do humor que permeia toda a narrativa. E não se engane: She-Hulk é uma comédia sem vergonha alguma de fazer comédia, seja com one liners bobos, piscadelas irônicas ou, como era tão esperado, quebrando a quarta parede.
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Contudo, entre piadas sobre as bizarrices do MCU e casos envolvendo criaturas mágicas sem noção, She-Hulk vai conquistar mesmo uma nova legião de fãs ao apresentá-los a uma protagonista inegavelmente feminina. Veja, diferentemente de outros casos no próprio universo Marvel, é palpável como essa série foi criada, escrita e desenvolvida por mulheres. Está em cada detalhe, desde a relação de quase devoção entre as melhores amigas e a decisão de tirar o salto antes de se transformar até como as pessoas ao redor da heroína reagem à descoberta dos seus poderes. Aliás, mais do que isso, está na própria relação de Jennifer Walters com seu alter-ego e toda a história de “você precisa controlar sua raiva”. Estamos diante de representações tão simbólicas que, confesso, chorei no primeiro episódio com um momento específico — e sim, Gao, tenho certeza de que todas vamos exaltá-lo:
Pretty confident I know exactly the moment and I had to fight for it tooth and nail. I kept declaring it was the single most important scene in the episode! This response means everything to me (unless we’re talking about 2 different moments, then this is pubic embarrassment 😰) https://t.co/aF6MZiCmiT
— Jessica Gao (@ChairmanGao) August 17, 2022
"Bastante confiante de que sei exatamente qual é este momento e tive que lutar por ele com unhas e dentes. Fiquei falando que era a cena mais importante do episódio! Essa resposta significa tudo para mim (a não ser que estejamos falando sobre dois momentos diferentes, aí essa só foi uma vergonha pública)", escreveu a roteirista e produtora-executiva.
Mas, como era visível antes mesmo da estreia da série, Gao e sua equipe sabem que o simples fato de ter uma mulher nos holofotes pode ser motivo de backlash nas redes sociais. Por isso, elas espertamente integraram tais críticas à série, ridicularizando os homens tóxicos — podem ficar tranquilos, nem todos os homens são assim em She-Hulk — ao mesmo tempo que mantém sua autorreferência sarcástica, capaz de render até o mais cético dos espectadores. Por isso, podem trazer o Hulk, o Demolidor e quem mais quiserem para fazer participações especiais. O seriado tem dona e proprietária, e ninguém o rouba dela.
Você deve estar se perguntando: mas e o CGI? A Marvel certamente ouviu as reclamações nas redes sociais depois do lançamento do primeiro trailer e deu mais atenção aos detalhes, sobretudo no rosto da heroína. Há mais textura e, por mais grandalhona que seja sua silhueta, ela integra bem ao restante do quadro. Mas, para além do preciosismo técnico, She-Hulk se beneficia do fato de que tem mais a oferecer que o CGI. Mesmo quando a arte não está completamente finalizada — caso do quarto episódio, que ainda passaria por retoques quando assisti —, você não se importa. A trama mundana, o tom irreverente e a deliciosa química entre os atores são por si só imersivos. Diante de uma experiência televisiva como essa, quão difícil pode ser acreditar em uma mulher verde superpoderosa advogando?
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She-Hulk é exibida às quintas-feiras, no Disney+. Prepare-se para a estreia assistindo à nossa entrevista com a atriz Tatiana Maslany:
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