Assistir a Capitão América: O Soldado Invernal agora, 10 anos depois de sua estreia em abril de 2014, é uma experiência profundamente agridoce. Por um lado, você é lembrado do que um filme da Marvel pode ser quando o estúdio está afinado; divertido, intenso e consequente, o segundo longa-metragem solo de Steve Rogers mudou o MCU, inclusive por trás das câmeras. Foi seu resultado que elevou a dupla de diretores Joe e Anthony Russo e os roteiristas Christopher Markus e Stephen McFeely ao topo da lista de favoritos de Kevin Feige. O quarteto arquitetou Capitão América: Guerra Civil, em tudo, menos no nome, um filme dos Vingadores, e os dois Vingadores que fecharam a Saga do Infinito.
Então, há o outro lado da moeda. Como qualquer marvete pode te dizer, nenhum dos filmes recentes do MCU são como O Soldado Invernal. Claro, há coisas boas entre os lançamentos recentes. Guardiões da Galáxia Vol. 3 é uma conclusão emocionante, e como bom fã de Sam Raimi, há muito que me agrada em Doutor Estranho no Multiverso da Loucura. Mas aí vêm já esquecidos Thor: Amor e Trovão, Homem-Formiga e a Vespa: Quantumania, onde a cena mais importante parece vir só depois dos créditos, lutas são uma festa de efeitos irregulares e cenários… bom, uma festa ainda maior de efeitos irregulares.
Bater na Marvel de agora é fácil, e não é minha intenção aqui. Não é preciso colocar O Soldado Invernal em contraste com esses títulos recentes, ou mesmo algo como Madame Teia (que meu colega, e ótimo crítico de cinema, Marcelo Hessel não me escute), para encontrar seus méritos. Hoje muito empenhados em serem expulsos do cinema, os irmãos Russo faziam, ali, sua estreia diretorial na telona. Com episódios de Community e alguns trocados no bolso, a dupla aperfeiçoou a tal fórmula Marvel — diálogos velozes equilibrando a exposição e humor, ênfase em momentos que comunicam com rapidez as personalidades dos envolvidos e sequências de luta ou perseguição cativantes, se não inspiradas — e bebeu do cinema de conspiração de Alan J. Pakula para envolver isso tudo numa camada (não muito grossa) de prestígio.
Hoje, é fácil rir de declarações exageradas como “Viúva Negra é um filme de James Bond” ou “Logan é um faroeste.” Eu certamente não vou argumentar que O Soldado Invernal é a versão moderna de A Trama (1974), mas colocar o Capitão América às escuras, pouco a pouco se descobrindo se diante de uma sociedade onde espionar os próprios cidadãos é tido como necessário, foi um excelente caminho para tirar do herói os tons mais óbvios de propaganda estadunidense. Sim, ele tinha uma estrela no peito e “América” no nome, mas Steve Rogers não é o homem. Ele é um homem.
Aqui, a estrutura tão comumente associada aos filmes de Pakula é de grande assistência. Em A Trama, Todos Homens do Presidente e outros, o cineasta sempre separou o governo e os governados. Um atua nas sombras para manter controle, o outro se esforça para trazer os segredos à luz. Dessa vez, o protagonista não trabalha no jornalismo, mas é a descoberta de verdades — sobre a S.H.I.E.L.D, sobre a HYDRA, sobre Bucky Barnes — que define a posição do Capitão América nos anos seguintes. Sem nunca se apoiar totalmente na ideia, O Soldado Invernal aproveita o status do Rogers de Chris Evans, assim como do Falcão de Anthony Mackie, como veteranos, traídos e abandonados por seu país depois que seu serviço terminou, para movê-los.
Este ainda é um filme da Marvel, então não temos nada muito anti-militar, mas é uma jogada que funciona nos níveis mais pessoais para Steve Rogers. O MCU funciona mais quando as grandes mudanças no tabuleiro são movidas por motivações conhecidas e bem fundamentadas. A cisão entre Rogers e Tony Stark em Guerra Civil é um dos melhores exemplos disso. O Homem de Ferro precisa estar do lado do governo porque é movido pela paranoia adquirida na batalha de Nova York. O Capitão América recusa o tratado de Sokovia porque aprendeu, em O Soldado Invernal, sobre as intenções ocultas de quem rege o poder.
O thriller sempre foi o gênero cinematográfico ideal para falar de desconfiança e quebra de inocência, e nos 1940 e 1950, era através do cinema noir que diretores começavam a quebrar a ilusão de sociedade ideal fortalecida pela vitória americana na Segunda Guerra Mundial que, no MCU, Steve ajudou a vencer. Em O Terceiro Homem, obra-prima de Carol Reed, um escritor americano (Joseph Cotten) viaja à Viena e, investigando a morte de seu amigo Harry Lime (Orson Welles), descobre uma Europa onde o otimismo presente nos EUA não existe. Em seu lugar, uma cidade em ruínas, de ordem social fragmentada, ganha os ares de um labirinto. Para ele, chegar ao fim desse enigma significará perder qualquer fé na clássica jornada do herói. O patriotismo de Steve tampouco sobrevive.
Dadas as devidas proporções, O Soldado Invernal acerta por colocar Steve Rogers nesse caminho. Cada soco abastecido pelo Soro do Super Soldado, cada bala desviada pelo escudo de Vibranium, cada pulo pelas asas dos helicarriers leva à verdade, dura mas necessária, de que ele era, desde suas apresentações para tropas na Grande Guerra, uma ferramenta de manipulação. Assim como o Soldado Invernal e como a própria S.H.I.E.L.D, ele era um meio através do qual controle podia ser exercido.
Depois de O Soldado Invernal, ele mudou. Steve Rogers nunca mais aceitou isso. Quando ele retoma seu uniforme clássico para o terceiro ato, a vestimenta simboliza uma ressignificação pessoal (isto é meu) tanto quanto uma lembrança nostálgica dos velhos tempos. Sua transformação não só abre o caminho para a fragmentação dos Vingadores, como também pauta a futura reunião do grupo em Ultimato no arco de personagens, e não (apenas) na necessidade comercial. Capitão América: O Soldado Invernal usa gênero, narrativa e mitologia para cravar seu lugar entre os melhores do MCU, mas é seu entendimento de como tudo isso se relaciona com o protagonista que o eleva acima de todos os outros. 10 anos depois, isso não mudou.