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Crítica

Acima das Nuvens | Crítica

Olivier Assayas faz com Juliette Binoche e Kristen Stewart um filme sobre o desafio de perceber e entender o tempo presente

16.10.2014, às 15H06.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H42

Antes de partir para simbolismos sofisticados e exercícios de metalinguagem, Acima das Nuvens (Clouds of Sils Maria) parte de uma situação bastante bruta a que a protagonista Maria Enders (Juliette Binoche) é sujeitada: tendo que recomeçar a vida depois de um divórcio, ignorada pelo amor platônico da juventude, abandonada pelo amigo/mentor suicida. Um cineasta sempre de muitas sutilezas, Olivier Assayas (CarlosHoras de Verão) parece colocá-las de lado neste filme, por um momento, para testar sem meias palavras até que ponto sua heroína aguenta a solidão.

Para a sorte de Assayas (numa decisão de casting bastante consciente), Binoche já enfrentou coisa muito pior e tira Acima das Nuvens de letra. Depois de saber da morte de Wilhelm Melchior, o dramaturgo e diretor de cinema que a descobriu na juventude, Maria Enders é convidada por um jovem talento a refazer no teatro a obra de Melchior que a lançou, uma peça sobre a relação gay de uma mulher de meia idade com uma jovem. O desafio proposto a Maria é que agora, décadas depois, ela troque de personagem e assuma o papel da mulher mais velha.

acima das nuvens

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É pedido a Maria Enders, em outras palavras, que ela encare sua própria velhice. A passagem do tempo, simbolizada pelas nuvens sinuosas de Sils Maria, nos Alpes suíços, é o primeiro dos muitos temas que Assayas propõe aqui, neste drama de redenção travestido de conflito geracional, entre comentários sobre arte, responsabilidade e cultura de celebridade.

Dos espelhos a que Assayas recorre para contar a história, o principal, evidentemente, é o jogo jovem/velha que se estabelece entre Maria Enders e sua assistente, Valentine - muito bem interpretada no filme por Kristen Stewart. Enquanto passam em Sils Maria o texto da peça, Valentine e Maria se confundem com as personagens da obra de Melchior. Que a patroa e a assistente já tenham se relacionado amorosamente antes é uma menção caprichosa que Assayas faz para deixar a imagem espelhada mais transparente.

Aos poucos, no acúmulo dessas pequenas simplificações (Maria se sente sozinha porque de fato ficou só, Maria e Valentine se sentem atraídas porque já se envolveram antes), fica a impressão de que Acima das Nuvens é um filme que elabora questões complexas mas se contenta com soluções imediatas.

Ainda assim, o jogo de duplos se sustenta, e talvez o melhor deles seja o da vida "real" em oposição à vida "acima das nuvens". Valentine repete o tempo todo essa expressão, "vida real", para falar das fofocas na web, do que repercute nos tabloides, para falar de personas públicas, enfim. Maria começa o filme enebriada por essa "vida real", uma vida urgente, sacudindo no trem na cena que abre o filme, a vida dos ensaios fotográficos, da imagem como uma verdade incontestável (e Maria permanece bela, não haveria com que se preocupar, nesse sentido).

Mas há uma outra vida que corre em paralelo; os planos que mostram o corpo do suicida sendo recolhido, e a viúva conversando com a polícia, são importantíssimos no começo do filme, para estabelecer a contraposição. Assayas primeiro filma essa vida paralela, nas nuvens, com sua câmera à distância, como se aqueles eventos (o corpo congelado, o reconhecimento da polícia) não tivessem o mesmo peso, a mesma importância, que um retrato de Maria Enders.

É a partir do seu retiro nas nuvens de Sils Maria, na segunda parte do filme, que Maria descobre que a imagem não é uma verdade incontestável - talvez não seja sequer uma verdade. Há nos Alpes um aspecto imaterial, naquela passagem do vento que mal forma um corpo de nuvens, mas há ali também a certeza do mundo físico, do tato: queimar papéis na fogueira, experimentar na pele a água gelada do lago. Enquanto isso, na "vida real", sonhamos com ficções do futuro e buscamos no Google as imagens dos nossos mortos.

No fim, embora Acima das Nuvens trate de projeções e espelhos no seu jogo de metalinguagem, trate da busca de uma compreensão por meio da arte, Assayas não negligencia o que no mundo há de descomplicado, como a visão de um corpo jovem nu numa cama - um dos momentos em que Maria Enders vê se manifestar diante de si o tempo mais cruel e mais honesto, o tempo presente.

Nota do Crítico
Ótimo

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