Mito autoral do cinema europeu, com 41 filmes de prestígio em um currículo iniciado em 1961, o italiano Marco Bellocchio vai abrir a 40º edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, no dia 19 de outubro, com seu mais recente filme Belos Sonhos, exibido em maio na abertura da Quinzena da Crítica, de Cannes.
Realizador de cults como De Punhos Cerrados (1965) e Vincere (2009), o cineasta virá ao Brasil para o evento, que exibirá alguns de seus clássicos, como A China Está Próxima (1967) e Diabo no Corpo (1986). Em seu último longa-metragem, Fai Bei Sogni no original, o diretor de 67 anos traça um panorama desanimador da Itália, pulando entre 1969 e 1990 nas trilhas emotivas de um jornalista às voltas com o trauma da morte da mãe. A franco-argentina Bérénice Bejo (de O Artista) é o rosto mais famoso no elenco. Nesta entrevista, dada em Cannes ao Omelete, Bellocchio fala sobre suas escolhas estéticas e suas lembranças de amigos brasileiros.
Que Itália encontramos em Belos Sonhos?
Bellocchio: Eu nasci numa Itália fascista, em uma família de nove irmãos. Recebemos uma carta de congratulações de Mussolini, o ditador do nosso país, parabenizando meus pais por terem tidos tantos filhos, dando à Itália braços para trabalhar. E fora esse jogo do fascismo, havia a Igreja que cerceava tudo, que patrulhava as relações, em especial no momento em que o Comunismo surgiu como uma luz para a minha geração. A Itália de hoje não é mais aquela, mas ainda sofre com contradições. A única grande paixão que ficou desde aquele tempo foi o amor pelo futebol. Eu me interessei em fazer este filme, baseado no livro de memórias do jornalista Massimo Gramellini, porque ele me dá um personagem que inventa uma certa Itália na mistura entre suas vivências, seus delírios e suas lembranças idealizadas da mãe.
O senhor teve uma relação muito próxima com os diretores brasileiros que, nos 1960, fizeram a revolução narrativa chamada Cinema Novo, tendo sido inclusive colega de escola do carioca Paulo Cezar Saraceni, morto em 2012. Que lembranças o senhor guarda do Brasil daquele período?
Bellocchio: A amizade é a principal recordação, sobretudo pela falta que sinto de Paulo e do também cineasta Gustavo Dahl, meus dois grandes companheiros de liceu no Centro Sperimentale di Cinematografia, em Roma. Aquele era um momento de juventude, no qual desfrutávamos com plenitude da euforia da criação e da revolução estética, com sonhos de usar a Arte como um instrumento de transformação. Éramos todos muito jovens e compartilhávamos do entendimento de que as mudanças deste mundo passam pela questão social e pela lucidez política. Ali, eu descobri contradições que formam o Brasil, seu país. E dali saiu a centelha a partir do qual Paulo Cezar fez grandes filmes como A Casa Assassinada.
Como o senhor vê o cinema que se faz hoje na Itália?
Bellocchio: Quando eu comecei a filmar, nos anos 1960, meu país era um organismo audiovisual vivo, que revolucionava as telas com os mestres do neorrealismo pela busca de uma linguagem transgressora, próxima do que se vivia nas ruas, nos campos. Eu pertenci a uma geração de prodígios, que conseguiram lançar seus primeiros filmes ainda muito jovens. Como espectador, eu vi muitas gerações de grandes diretores italianos se estabelecerem e sofri com a partida dos grandes diretores, como Ettore Scola, por exemplo. Mas a grande surpresa é ver o quão rápido a gente consegue filmar, finalizar e lançar filmes na Itália nos dias de hoje. Em 1965, quando eu fiz meu primeiro sucesso, De Punhos Cerrados, a gente conseguia, no máximo, emplacar uns três filmes em circuito ao longo de um ano. Hoje, eu percebo que a gente lança quase 50 títulos. Isso tem a ver com a revolução digital, mas também tem a ver com o fôlego da atual juventude que, para o meu prazer e a minha honra, reporta-se com carinho ao meu trabalho. É emocionante saber que os jovens ainda se sensibilizam com obras como A China Está Próxima. O que deixa alarmado, contudo, é pensar que esses filmes ainda encantam não apenas por razões estéticas, mas porque os problemas que foram denunciados por ele prosseguem, imutáveis.
Que problemas ainda assombram a instituição “família”, seu objeto de estudo mais recorrente a cada filme?
Bellocchio: Meu tema, por excelência, são as tragédias familiares, sobretudo as mais invisíveis, que se dão nas repressões do dia a dia. Mesmo meus filmes mais políticos tem elementos sobre relações parentais em primeiro plano. E o que mais me assombra é ver a recorrência histórica do patriarcado no jugo dos indivíduos. O pai ainda manda. Mesmo em casas sem pais, onde é a mãe quem sustenta os filhos, os pais são uma presença fantasma. Este meu novo filme, Belos Sonhos fala de maternidade como uma forma de resistência que se dá pelo idílio e pela invenção, a partir de memórias, a partir de resquícios afetivos recriados de modo inventivo, fabular. Minha relação com a minha mãe não foi tão próxima como é a do meu protagonista aqui. Mas ao ler o livro, no qual nos baseamos, fiquei encantado com a possibilidade de retratar uma relação familiar a partir da fantasia, seguindo um homem que noticiou guerras, como jornalismo, que noticiou dilemas no futebol italiano, que viveu as diferentes crises do meu país.
Até o encerramento da Mostra de SP, no dia 2 de novembro, passam pelo evento filmes esperados como Elle, do holandês Paul Verhoeven; Animais Noturnos, do americano Tom Ford (Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza); o polêmico Nascimento de uma Nação, do também estadounidense Nate Parker (fenômeno em Sundance); Estados Unidos pelo Amor, do polonês Tomasz Wasilewski (melhor roteiro no Festival de Berlim); e o desenho animado francês A Menina Sem Mãos, de Sébastien Laudenbach (prêmio do júri em Annecy). No dia 22, o cineasta americano William Friedkin (O Exorcista) passa pelo festival paulistano para dar uma masteclass sobre sua carreira, coroada com o Oscar por Operação França (1971).