Era o final dos anos 80 e eu buscava no dial a mal sintonizada rádio paulistana Brasil 2000. Como um operador de guerra buscando segredos do outro lado do front, eu girava o botão milimetricamente - ela só pegava na casa do meu vizinho e com o auxílio de bombril - em busca de novidade. Entre chiados e microfonia tomei contato com Nick Cave e seus Bad Seeds, que atraíram de cara minha atenção com "Mercy Seat", um mantra despejado a marteladas cadenciadas que durava mais tempo do que a maioria poderia suportar.
Anos (vários) depois, cheguei a usar a música como medida de caráter. Colocava pra tocar pros novatos do Omelete e se alguém fizesse um comentário idiota eu tinha uma boa medida da relação que teria com essa pessoa.
Nesses primeiros anos em que descobri Nick Cave, pré-Internet, comprei alguns vinis que ouvi com frequência. Mas pude realmente explorar sua discografia uns 10 anos depois quando comecei a trabalhar para um selo eletrônico famoso por CDs "do momento" compilados por DJs e cujas capas eu fazia cheias de neon. Por alguma razão, que continuo sem conhecer, os direitos sobre todos os álbuns dos Bad Seeds eram deles - e saí carregado de uma reunião com sua discografia completa, já que ninguém ali sabia direito o que fazer com ela.
Eram uns seis álbuns só, nada comparado aos 16 que Cave tem agora nas costas, além de livros, filmes sobre seu processo criativo e trilhas sonoras. Aos 59, o australiano - que cantou e segue cantando sobre o gótico, o desajustado e o estranho, às vezes romântico, surreal e sempre incisivo - tornou-se um dos mais versáteis artistas em atividade.
Em 2015, a morte do filho por um acidente com LSD, alterou dramaticamente os rumos de seu último trabalho, Skeleton Tree, e adiou sua coletânea celebratória. O enlutado Cave, porém, decidiu que usaria uma turnê como remédio - e anunciou uma extensa série de shows.
Em novembro passado, stalkeando a lista, notei com entusiasmo que o show em Chicago aconteceria apenas dois dias após o fim da E3 2017, em 16 de julho, e garanti meu ingresso.
Meses de espera depois e enfim estou no centenário Auditorium Theatre da Roosevelt University - considerado um marco histórico da orgulhosa cidade e um dos teatros mais acusticamente perfeitos dos EUA. Do meu lugar no balcão no alto, lateral esquerda do palco - único lugar decente disponível lá em novembro - penso em minha própria mortalidade ao observar o público. Vejo cabelos rareando e barbas longas pra compensar. Barrigas que não somem como antes e senhoras tatuadas vestindo preto. Estamos velhos.
As luzes se apagam e a idade desaparece. 3400 pessoas erguem suas vozes para a entrada dos Bad Seeds. Warren Ellis, multi-instrumentista, compositor, lenda, é o mais aclamado. O grupo toca os etéreos acordes de "Anthrocene" para a entrada da vampírica, elegante e longilínea figura de Nick Cave.
Sua esguia figura, projetada por um canhão de luz na parede lateral do teatro como em um musical de Nosferatu, dança controlada por um titereiro invisível. O vozeirão enche o teatro ao som de canções dos dois últimos e formidáveis álbuns, Push the Sky Away e Skeleton Tree, entre clássicos como "Mercy seat" e "Red right hand".
O começo é hipnótico. Cave levanta e senta em seu piano diversas vezes, até abandoná-lo para o centro do palco. Não dura muito, porém, o setup convencional de show. Cave sobe nos subwoofers diante do palco e começa tocar as pessoas. Nas primeiras e mais intimistas canções, carregadas de perda, Cave parece um pastor, chamando para si o público mais próximo. O teatro começa a levantar e pessoas invadem as primeiras fileiras, respondendo aos apelos. "Can you feel my heart beat?" pergunta, colocando as mãos de estranhos em seu peito.
Cave não vai mais embora. Passa mais da metade do show conectado com o público, alimentando-se como bom vampiro de sua energia. Ele se ajoelha, o bom pastor, enquanto canta referências bíblicas, sua dor e o nonsense de "Miley Cyrus na savana africana". Conforme o show se aproxima do fim, porém, ele começa a se lançar sobre os devotos. Semi-carregado, andando sobre as cadeiras, caindo e sendo levantado. Mais de uma vez empurrando alguém meio violento. O punk continua ali, independente do terno slim e da perda. O frenesi religioso ganha contornos ainda mais estranhos quando noto Ellis contorcendo-se de costas para o público e dançando como um possuído em seu terno bem cortado. Cabelo e barba de mendigo louco desgrenhado misturando-se no transe, violino sintetizado em mãos. Larry Mullins acompanha surrando o piano. "Jubilee Street" coloca Cave gritando com os braços abertos “I’m transforming, I’m vibrating, I’m glowing”. Um spot cegante o encontra.
Uma certa redenção chega com "Distant Sky”, acompanhada pela soprano dinamarquesa Else Torp no telão. “They told us our dreams would outlive us … but they lied” retoma a sensação de perda.
Cave encerra o set com "Skeleton Tree", para voltar do backstage minutos depois para mais três músicas. Em tom de catarse coletiva, seus devotos cantam "The Weeping Song". Tomado, ele convida uma mulher ao palco. Depois outra... um homem... e mais de uma centena de pessoas sobe ao seu lado, fazendo desaparecer a banda. "Stagger Lee" é despejada em meio aos caos. Cave mergulha entre as cadeiras, ressurgindo no meio do teatro, em pé mais uma vez nas cadeiras e segurado por um mar de braços esticados. "I am a bad motherfucker, don't you know?" grita.
"Push the Sky Away" termina em coro. O teatro de pé, em reverência, em homenagem e apoio. Parte da jornada de superação. Dividimos sua dor, ouvimos seu lamento. Agonia e êxtase em uma noite perfeita.
Nick Cave em Chicago, 16/06/17, set list:
1. Anthrocene
2. Jesus Alone
3. Magneto
4. Higgs Boson Blues
5. From Her to Eternity
6. Tupelo
7. Jubilee Street
8. The Ship Song
9. Love Letter
10. Girl in Amber
11. I Need You
12. Red Right Hand
13. The Mercy Seat
14. Distant Sky
15. Skeleton Tree
Bis
16. The Weeping Song
17. Stagger Lee
18. Push the Sky Away