Em um verso de “La Mudanza”, faixa que encerra o seu Debí Tirar Más Fotos, o super astro porto riquenho Bad Bunny se define como “o melhor da nova porque foi criado pela velha”. A “nova” e a “velha” às quais ele se refere, como fica abundantemente claro nas 16 faixas anteriores do disco - o sexto da carreira de Bad Bunny -, são as gerações da tradição musical porto-riquenha. No decorrer de Debí Tirar Más Fotos, o artista (que compôs a grande maioria do disco sozinho) faz repetidas referências faladas e musicais, com citações nas letras e samples nas produções, a artistas como Plan B, El Gran Combo, Héctor & Tito, Jowell y Randy, Los Pleneros de la Cresta.
São nomes que podem não significar muita coisa para o ouvinte brasileiro, mas que construíram um legado colossal entre os anos 1980, 1990 e 2000 em Porto Rico. O arquipélago localizado a pouco mais de 1.500 km de Miami, cujo status como território anexado dos EUA - sem os privilégios de um estado “comum”, nem independência completa como país - é uma questão de debates cada vez mais acalorados, foi o solo fértil onde cresceu o movimento reggaeton (o ritmo se originou no vizinho Panamá, mas foram os artistas porto riquenhos que o popularizaram), se infiltrando nas paradas musicais mundiais paulatinamente com hits como “Gasolina” (2004) e “Despacito” (2017).
Bad Bunny é, de fato, quase a consequência lógica desse processo: um popstar global incontestável, com uma das maiores fanbases do planeta, que não só afirma sua herança porto-riquenha como também tira muito de sua inspiração musical da tradição que se construiu antes dele. O mais bacana de Debí Tirar Más Fotos, no entanto, é que ele se revela como o álbum em que o artista, mais confortável do que nunca em sua posição na crista dessa onda, se permite olhar para frente tanto quanto olha para trás. E a ideia que governa o disco é genuinamente audaciosa: fazer reggaeton vibrantemente contemporâneo, tingido pelas influências melódicas do R&B “gringo”, e incorporar nele os instrumentos e estruturas mais regionais imagináveis.
O resultado fica claro já na canção de abertura, “Nuevayol”. Atrevidamente intitulada em homenagem à pronúncia particular de “Nova York” preferida pelos muitos porto riquenhos que se instalam por lá, ela começa com uma banda de salsa e desemboca no momento mais inesperado possível em um batidão eletrônico complementado por sintetizadores agudos que não estariam fora de lugar em uma boate de house music. Bad Bunny entra na canção só no segundo minuto, desfilando o seu ritmo muito particular de rap sincopado por sílabas engolidas e encurtadas, que ele entrecorta com o coro chupado de uma canção de Andy Montañez com o Gran Combo - o primeiro de muitos samples do tipo no álbum.
O procedimento vai se repetindo com resultados invariavelmente excitantes no primeiro terço do disco, talvez mais memoravelmente em “Baile Inolvidable”. O grosso da canção é levada por sopros dramáticos, pianos ritmados e uma percussão metálica (a cara da música tradicional porto riquenha), mas os versos de amor machucado de Bad Bunny não escapam também da ambientação eletrônica. O momento em que os sintetizadores graves vão se transformando em trompetes, lá pelo 1 minuto de canção, é de puro êxtase musical - e a escolha de cortar esse êxtase com um brevíssimo interlúdio falado antes de cair em uma balada mais convencional, quase jazzística (ainda que deliciosamente balançada, é claro) é igualmente inspirada.
Liricamente, é verdade, o disco demora um pouco mais para encontrar o seu território de conforto. Debí Tirar Más Fotos passa um tempo divagando por desventuras amorosas, alternando versos em tom melancólico de homem de coração machucado e investidas mais penetrantes pelo território do ressentimento misógino (“Ketu Tecré” é a “Hotline Bling” de Bad Bunny, no pior sentido possível) - uma variação um tanto tediosa que torna o miolo do disco meio aborrecido, e que em nada combina com as ideias estéticas muito mais perigosas dele. E digo “perigosas” até porque, lá pelo fim do Debí Tirar Más Fotos, o artista parece finalmente encontrar uma linha para conectar sua jornada amorosa e sua jornada artística, e o álbum volta a ganhar pique.
O primeiro ponto de virada é “Turista”, balada lamentosa levada por violões dramáticos, em que Bad Bunny alterna entre sussurros e gritos filtrados para fazer elegia a um “rolinho” com quem passou “muitas noites bonitas” na sua Porto Rico, mas nenhuma “tão bonita quanto ela”. Esse tecido que conecta paixão pela terra e paixão carnal reaparece na belíssima “Lo Que Le Pasó a Hawaii”, que empresta o balanço típico da música jíbaro (palavra que também identifica os fazendeiros do interior de Porto Rico, criadores do ritmo) para descrever uma beldade com olhos que “sorriem para segurar o choro”. A homenageada da letra logo se mostra um dublê para a própria ilha natal do cantor, no entanto, e a canção de amor acaba se transformando em marcha de protesto político.
“Querem me tirar o rio e também a praia/ Querem o meu bairro, e que minha avózinha se vá/ Não, não soltem a bandeira nem esqueçam o movimento/ Não quero que façam contigo o que fizeram com o Havaí”, declama ele em um refrão constantemente recortado por cordas sintetizadas, violões e teclados graves. Os versos deram o que falar para Bad Bunny na terra natal, onde parte da população enxerga o caso do Havaí - outra ilha colonizada pelos EUA, que ganhou direitos de estado só no final dos anos 1950 - como exemplo positivo para Porto Rico, e parte como aviso sombrio de que a cultura local pode se extinguir (ou ser cooptada como mero ponto de venda turístico) caso o povo não persiga a independência. O cantor, claramente, já escolheu um lado dessa disputa ideológica.
Daí em diante - e talvez até restrospectivamente -, dentro das entrelinhas que se juntam a elas, as canções de amor suspirantes ou raivosas de Bad Bunny ressoam com mais força. Por cima das flautas e sintetizadores praianos de “DtMF”, por exemplo, ele se junta a um coral improvisado para desejar que “os seus nunca se mudem” de Porto Rico, e prometer “tirar mais fotos da época em que teve” a ilha a seu dispor. O pop dançante do cantor, tão baseado na ânsia de alcançar o inalcançável, e de não perder o alcançável, de repente faz mais sentido como necessidade cultural, como expressão genuína de uma tradição que continua vital… porque continua reverente, mas continua se renovando.
Ano: 2025