A palavra “sin” (pecado, em inglês) aparece várias vezes no começo do Renaissance. Em meio à ostentação da faixa de abertura, “I’m That Girl,” se esconde uma Beyoncé que luta ferrenhamente contra uma noção de não-pertencimento aguda, trazida pela combinação entre a experiência negra nos EUA e a culpa cristã incutida nela por anos de igreja aos domingos. “Limpe-me de todos os pecados/ Da minha vida não-americana”, declama ela na canção, por cima do sintetizador grave e opressivo que caracteriza a produção, com a cantora passeando sem constrangimento nem estrutura entre o rap e o soul.
Renaissance não é um álbum de lamentações, no entanto. “Cozy”, a canção seguinte, mostra que “I’m That Girl” foi mero prólogo para uma declaração orgulhosa de identidade, trocando os synths por uma linha de baixo frenética e deixando Beyoncé se declarar “confortável na própria pele/ um metro acima dos seus ‘pecados’”. Daí a inclusão de trechos de “B**ch I’m Black”, vídeo da atriz, cantora, escritora e estrela de reality show Ts Madison, o primeiro aceno do disco para a conexão essencial entre a identidade negra e a LGBTQIA+ (Madison é trans) no seu discurso de afirmação e reivindicação.
Isso porque o Renaissance se mostra logo a seguir, em “Alien Superstar”, uma tentativa audaciosa de resgate da negritude e do caráter queer da dance music anglófona. Com um sintetizador rasgado como base do instrumental, por cima do qual Beyoncé entrega versos no ritmo típico do ballroom (cultura desenvolvida em Nova York na qual indivíduos LGBTQIA+, principalmente mulheres transgênero negras e latinas, se reuniam em boates e competiam por troféus se apresentando em uma mistura de canto, dança e teatro). É quase irônica a forma como a canção interpola “I’m Too Sexy”, do Right Said Fred, enquanto resgata as influências marginalizadas que a criaram.
Daí adiante, com a sua missão articulada e desenhada, o Renaissance segue desimpedido, com um método muito específico, bem diferente do visto na maior parte dos álbuns pop ocidentais da atualidade. Beyoncé e seu extenso time de co-compositores e co-produtores são afeitos a inserirem um sample ou referência em uma canção e carregá-lo para a próxima (“Ooo La La”, de Teena Marie, aparece em “Cuff It” e, logo depois, em “Energy”; já “Explode”, de Big Freedia, surge em “Energy” e deságua a seguir no single “Break My Soul”). É uma forma engenhosa de encadear um disco, e de estruturar uma obra que é tão conectada às tradições por cima das quais constrói sua musicalidade.
Durante o Renaissance, Beyoncé frequentemente faz o papel de historiadora, apontando para os cantos ignorados da dance music negra e trazendo-os à superfície com um verniz moderno. Daí o resgate de Robin S. e sua “Show Me Love” (em “Break My Soul”). Daí o feat com Grace Jones em “Move”, que cita o estilo de dança jamaicano brukup. E daí a citação à clássica “I Feel Love”, de Donna Summer, na faixa de encerramento “Summer Renaissance” - é Beyoncé guardando a referência mais reconhecível para o fim, depois de nos mostrar tudo o que foi esquecido pelos anos e décadas de apagamento.
Isso não significa que o álbum não seja profundamente pessoal para a artista. Como toda a elaboração em torno da culpa e do pecado nas primeiras faixas demonstra, Renaissance é, em seu coração, um álbum sobre fazer as pazes consigo mesmo. Na romântica “Plastic Off the Sofa”, que - ao lado da épica “Virgo’s Groove”, de 6 minutos - dá uma pausa na homenagem ao dance para se desdobrar para os lados do R&B contemporâneo (algo que a irmã de Beyoncé, Solange, faz muito bem), a cantora rejeita as dúvidas e declama que “o resto do mundo é estranho, vamos permanecer no nosso caminho”.
Essa angústia por algo fundamentalmente bom ser considerado errado por convenções das quais não temos nenhum controle (“Será o meu amor um crime?”, pergunta Beyoncé diretamente em “All Up In Your Mind”) perpassa o Renaissance e encontra válvula de escape na pista de dança. A aproximação com a identidade queer vem daí, também. Ao contrário de muitas divas pop que se apropriam dessas referências, Beyoncé entende intrinsecamente que a alegria e euforia da dance music vem de carregar um sofrimento que exige liberação. É tudo soul, no fim das contas.
O Renaissance, enfim, é um resgate valoroso de uma tradição injustamente resignada às sombras, e uma obra com centro emocional sólido. O que lhe falta para ser perfeito é só um pouco de riqueza instrumental para combinar com essa riqueza temática - e não me levem a mal, porque ideias boas existem, da queda de tom deliciosa que marca a entrada do sample em “Summer Renaissance” à mistura divina de new wave e hip hop noventista que forma a melhor faixa do disco, “America Has a Problem”.
A inconsistência dessas ideias é que incomoda, especialmente em um disco de 16 faixas e mais de 1h de duração. A impressão que fica é que faltou uma boa auto edição, uma seleção de canções mais criteriosa. Dos menos de 2 minutos de “Energy” à caótica “Church Girl”, passando pela divisão confusa de “Pure/Honey”, há detalhes por aqui que não se encaixam com o todo tão firme elaborado pela cantora e sua equipe. Do jeito como está, Renaissance é um ótimo álbum - que só não é uma obra-prima por sua própria culpa.
Ano: 2022
Produção: Beyoncé Knowles