Introspectivo, honesto e com lógica sonora própria, talvez essas sejam as principais qualidades que conectam as 18 faixas do novo disco de Kendrick Lamar, Mr. Morale & The Big Steppers.
O álbum duplo conta com momentos muito particulares da construção musical do rapper estadunidense, com elementos de jazz, blues, arranjos orquestrais e graves modernos, criando uma excelente mistura entre pontos já conhecidos de sua criatividade musical e boas pitadas de sons contemporâneos. Essa mistura interessante entrega uma jornada sonora com pouco mais de uma hora de duração, que parece ter sido criada para conduzir o ouvinte por uma experiência que permanecerá reverberando por bastante tempo, seja pelo desafio musical, seja pelos tópicos compartilhados em cada uma das faixas.
Foram cinco anos de espera entre DAMN. e o novo álbum, período que desaparece no primeiro play e mostra como o isso é importante para a criação de obras desafiadoras, principalmente quando falamos de Kendrick, um artista que neste período não só chegou ao topo do reconhecimento por seu trabalho (tornando-se o primeiro artista fora da música clássica e do jazz a receber um Pulitzer), mas que também reforçou o quão importantes são suas criações como parte da música contemporânea.
Com tudo isso em perspectiva, assim que as primeiras notas de “United in Grief” ressoam, é importante não se precipitar. Deixar a música te conduzir é o segredo para mergulhar no que cada momento propõe, e isso fica ainda mais potente ao final do disco.
Os sons orgânicos, as acelerações e desacelerações, os arranjos e sonoridades instrumentais, dão a tônica do álbum neste primeiro momento. É como começar com uma “pedrada soft”, repleta de camadas e sons que direcionam o foco para o que está sendo apresentado. Essa premissa em conjunto com um “giro alto” se mantém até “Die Hard”, faixa que emula um hip-hop praiano, com arranjos orquestrais embebidos em uma sonoridade que traz uma suave lembrança do que era reproduzido na MTV em algum momento dos anos 2000.
Neste ponto do disco, Kendrick já refletiu sobre cancelamento (“N95” é uma pedrada e o clipe deixa ela ainda mais potente), sobre o peso de ser pai e caminha para sons menos acelerados. Ele se aprofunda ainda mais na reflexão sobre paternidade, caminhando por um trajeto mais melódico em “Father Time” que ganha muito em sua sonoridade, graças à participação de Sampha.
Desse ponto em diante, parece que estamos acompanhando um mergulho do artista em si, o tempo dilata e o flow desacelera, quase como aqueles momentos em que amigos precisam confessar segredos e então respiram fundo para acalmar os ânimos antes de falar sobre o que realmente os aflige.
Todo o próximo trecho do disco segue esse tom de confissão com o coração aberto. Alguns elementos sonoros diferentes surgem, sempre em busca de manter os ouvidos atentos ao que está sendo dito.
Nessa dinâmica, “Rich Spirit” abre caminho com tranquilidade e minimalismo para a impactante “We Cry Together” que chega com um sample de Florence Welch, na abertura, além da voz de Taylour Paige. Aqui um casal se desentende e possivelmente chega em um momento extremamente honesto e violento da relação. É praticamente impossível passar por esse ponto do álbum sem refletir sobre o que acontece com cada um dos personagens retratados.
“Purple Hearts”, com a participação de Summer Walker e Ghostface Killah, encerra a primeira seção com intensidade, deixando um gosto bom enquanto rolam os poucos segundos antes da próxima faixa começar.
A abertura do novo ato com “Count Me Out”, seguida por “Crown”, “Silent Hill” e “Savior - Interlude” evidenciam compassos mais lentos, colocando luz sempre no que Lamar e seus convidados têm a dizer. Seguindo deste ponto, o álbum tem alguns momentos um pouco mais grandiloquentes, com faixas repletas de graves, enquanto Kendrick segue compartilhando seus desafios do dia a dia, às vezes sozinho, às vezes com artistas como Beth Gibbons, vocalista do Portishead.
Como parte dos pontos altos do segundo disco, é importante destacar “Auntie Diares”, música na qual o artista fala, de forma muito honesta e clara, sobre o processo interno que enfrentou para compreender e se reconectar com pessoas da sua família que transicionaram. Forma corajosa de abordar seus preconceitos e colocar luz sobre como sua religião gera conflitos que precisam de muito trabalho para serem solucionados.
Olhando com atenção para todas as temáticas apresentadas no disco, não há como negar que além da entrega elaborada de sonoridades, às vezes um pouco mais pop, às vezes mais experimentais e desafiadoras, a escrita do rapper é balizada pelo que acontece em sua vida, e fazer parte dessa conversa é algo único.
Mr. Morales & The Big Steppers é um disco que pode entreter, sim, mas que a cada audição deve chegar mais perto do coração dos fãs e também das pessoas que ainda não se sentem tão conectadas a tudo que Lamar tem escrito e compartilhado até o momento.
Assim, depois dessa jornada é necessário ter um tempo para se aprofundar no novo disco e descobrir um pouco mais das nuances que a mente de um dos artistas mais provocadores do hip-hop mundial tem colocado à nossa frente. Ser conduzido por essa jornada de confissões profundas e sons elegantemente complexos dá a certeza de que em cada nova audição podemos estar mais próximos do artista e, por que não, da nossa própria realidade.
Ano: 2022