Kendrick Lamar merece prêmios só pelo título de seu penúltimo álbum, To Pimp a Butterfly, um nome que deixa em evidência a inventividade de um rapper de pegada clássica, que consegue misturar rimas rápidas com uma sonoridade orgânica, completamente diferente de tudo o que eu já ouvi nesse segmento. Em Untitled Unmastered, lançado de surpresa, é impossível não ficar encantado com um compositor capaz de misturar em um mesmo trabalho os graves marcantes – presentes em grande parte dos lançamentos de rap e hip-hop contemporâneos -, uma pegada jazz e, até mesmo, bossa-nova, tudo sem perder seu conceito sonoro, sempre original. Composto por sobras do já citado trabalho de 2015, as sete faixas desse novo álbum não fogem à linha que o artista vem desenvolvendo desde seu primeiro projeto, Section.80, porém, agora, com ainda mais potência e relevância.
Logo de cara, dá para notar que esse não é um projeto tão simples. Com uma sonoridade pensada para explorar os ouvidos e as referências dos ouvintes, o trabalho se apresenta como uma criação requintada e que, mesmo desenvolvido por um artista de destaque nas paradas pop/hip-hop, pode levar um tempo para que você se habitue a sua proposta (o que aconteceu comigo). Mas, assim como a história do vinho, as músicas ficam melhores a cada nova audição. Um bom paralelo para usar em relação a esse projeto são os dois últimos discos de Justin Timberlake, que partiu para uma mistura de sintetizadores somada a uma big band de responsa e conseguiu colocar seu público dentro de uma panela sonora. Lamar não chega a fazer a mesma pressão constante neste disco, mas se alterna entre arranjos suaves e pesados, dando ao projeto uma cara especial e marcante.
Assim, Untitled Unmastered não chega a ser uma surpresa para quem já acompanha a carreira do rapper, mas apresenta boas músicas, misturando o que há de mais interessante em estilos musicais como funk e free-jazz e embalando tudo em uma roupagem contemporânea. Isso fica claro logo na primeira faixa do álbum, “untitled 01 | 08.19.2014.”, que começa devagar, acelera no meio e aposta em vozes ritmadas ao final. Com certeza, uma forma ainda mais precisa de aprofundar o trabalho do rapper, seja em sua criação sonora, seja em suas composições focadas em letras políticas e existenciais.
Já “untitled 02 | 06.23.2014.” mantém a pegada jazz, com foco em graves eletrônicos, solos de sax, mais um leve dedilhado de piano ao fundo. Mistura perfeita para criar uma atmosfera realmente inesperada para uma produção de hip-hop. E ai, sem dúvida, está a beleza do trabalho de Lamar, que consegue ir além dentro desse estilo graças a alicerces construídos de maneira fluída, incorporando novas possibilidades e dando uma roupagem inovadora e moderna, inclusive para sonoridades menos contemporâneas.
Claro, o crédito por essa mistura funcionar tão bem fica a cargo das referências de Lamar, que mescla Miles Davis, Dr. Dre e tantos outros estandartes de diversos estilos musicais. Dentre todas as músicas presentes no projeto, o destaque fica por conta do swing de "untitled 03 | 05.28.2013.", com participação de Anna Wise, e a sonoridade incrível de “untitled 06 | 30/06/2014”, que conta com a participação de CeeLo Green, e faz você querer sair dançando pela sala.
Dentro desse conceito, outra forte influência na música de Lamar é a sua fé, detalhe que fica comprovado em uma entrevista concedida ao The New York Times, em 2015, na qual afirma que parte de seu público o vê como um pastor. Untitled Unmastered não chega a ter a pretensão de Kanye West, que afirmou que The Life of Pablo era "um álbum gospel", mas deixa a assinatura de sua espiritualidade e de sua preocupação com o lugar de onde veio em conjunto com a necessidade de representar essas pessoas em cada uma de suas letras.
No entanto, mesmo ciente ou consciente do papel que assumiu como seu, Lamar aborda sua temática sem poupar palavras, ou palavrões, sem dúvida uma forma de fazer com que sua mensagem chegue de maneira direta e sem filtros. Para entender isso, basta ver sua apresentação no último Grammy Awards, provavelmente uma das mais impactantes que já aconteceram no palco da premiação, cheios de espaços em branco – para “poupar” a audiência dos palavrões -, e que ajudou a repercutir ainda mais seu posicionamento tanto como o porta-voz do lugar de onde veio (Compton, Califórnia) quanto como alguém disposto a fugir do senso comum.
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