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Crônicas omeléticas: Quando Kurt Cobain disse adeus

Crônicas omeléticas: Quando Kurt Cobain disse adeus

08.04.2004, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H16
Foi em 16 de janeiro de 1993. Onze anos atrás. Ia ter show do Nirvana no Morumbi. Ia ter prova da Cásper Líbero, vestibular para o curso de jornalismo. Alguma coisa me dizia que eu deveria ir ao show e não à prova. Talvez fosse eu mesmo, aquela figurinha esquisita, de bermudas gigantescas, camisetas que caberiam no Jô Soares e - ah, sim - um tortíssimo moicano na cabeça. Pra quê é que eu ia ficar numas de ser ou não ser, quando já era?

Veja bem: era dia 16 de janeiro, um sábado.

Na segunda-feira, dia 11, meu nome havia aparecido numa lista de aprovados. Depois de comemorar discretamente com amigos que estavam comigo, mas não tinham tido a mesma sorte, eu fui pra casa da garota com que eu tinha ficado no Natal. Lá, a gente decidiu que podia tentar começar aquele que seria meu primeiro namoro que ousava se chamar de namoro.

Na terça, dia 12, foi aniversário da Simone e do Américo. A Simone tinha dado festa na casa dela, como de costume. O Américo já tinha dito que a festa dele ia ser no Morumbi, tanto na sexta, quanto no sábado.

Na quarta, dia 13, meu cabelo se foi. Isso implica em dizer que eu era o primeiro dos meus colegas do cursinho a poder cumprir a promessa de passagem. Fui até o Aki Jaz, o barbeiro onde normalmente meu cabelo era podado e contei o plano para o Magrão, que era o cara que normalmente podava meu cabelo. Ele não gostou da idéia, afinal, isso ia contra nosso trato não verbal - aquele em que eu dizia como queria que ele cortasse meu cabelo e ele, depois de comentar as notícias vigentes, esquecia tudo e cortava do jeito que ele achava que ia ficar bom. Como assim moicano?, ele me perguntou, com aquela maquininha na mão. Tirei a maquininha da mão dele, passei de um lado, passei do outro e deixei uma tira felpuda no meio. Tá vendo essa faixa de cabelo aí? Então... tira todo o resto e deixa só ela: isso é um moicano.

Naquela época, havia um quarto na casa da minha avó, onde eu ficava a maior parte do tempo. Era lá que ficavam meus discos, meus raros e parcos CDs e minhas gavetas entupidas de fitas. Era lá que morava meu aparelho de som. Era lá que eu morava, apesar de dormir na casa dos meus pais todas as noites. Foi pra lá que eu corri, sentindo as primeiras gotas de chuva batendo na minha cabeça nua. Foi lá que meus amigos mais chegados foram me buscar pra tomar cerveja, pra falar besteira e lambuzar minha pele com uma mistura funesta de graxa, tinta verde, óleo de carro, clara de ovo e penas de travesseiro.

Na sexta-feira, quinze banhos depois, eu era outra pessoa. Mesmo. Vestido com roupa do exército, coturnos com esporas e com white power escrito nas laterais do crânio, fui fazer a matrícula na faculdade e - talvez por causa da minha aparência - nenhum dos veteranos que estava lá encostou em mim. Matrícula feita, botei um boné que escondesse o white power, fui até o bar do seu Wilson, pedi uma cerveja - que o seu Wilson mesmo dividiu comigo - e uma barra de sabão de coco, que me ajudou bastante a tirar aquilo da cabeça.

Foi só na sexta mesmo, depois de ter ouvido todo mundo contar como tinha sido o show do Red Hot, que decidi. A Cásper Líbero que se fodesse - eu ia ver o Nirvana.

Comprei ingresso de cambista sim.

Tomei jato dagua na cara no meio do show do Doctor Sin (e, sim, aquilo fez com que TODOS os meus cigarros fossem destruídos nos primeiros minutos de show).

Cuspi no distintivo do São Paulo sim.

Vi o Maurício Kubrusly levar um saco de mijo na cabeça na frente das câmeras sim.

Dei entrevista pro Gastão na MTV sim.

Ganhei um beijo de uma mulher famosa sim e fiquei sem saber o que fazer sim.

Tá... Tudo só contribuiu para que, quando o Nirvana subisse ao palco, eu tivesse certeza absoluta de que estava vivendo os melhores dias da minha vida de adolescente.

Então veio o show: Flea participou de Smells Like Teen Spirit, Kurt afinava a guitarra no meio das músicas e, lá onde eu estava, batendo papo com o Andria e o Ivan Busic, do Doctor Sin, não dava pra ver nada direito. Nada a não ser uma banda de garagem, tocando como uma banda de garagem e se comportando como uma banda de garagem. O show começou a me hipnotizar quando eles trocaram de instrumentos e começaram a tocar covers. Não eram covers normais - eram covers feitas por gente que sabia o que tava tocando, gente que comprou disco a vida toda e que gostava de ouvir música, mesmo que fossem aquelas músicas. Quando Kurt Cobain foi pra bateria e começou a batucar a introdução de We Will Rock You, eu corri pro meio da pista. De alguma maneira, eu sabia que havia uma cosinha diferente lá. Fosse pela ironia, fosse pelo non-sense, aquela bandinha de merda, aquela bandinha de garagem, estava fazendo história de alguma maneira que eu não reconhecia.

Tocaram Should I Stay Or Should I Go sim, tocaram Rio sim, tocaram Run To The Hills sim, tocaram Kid In America sim, tocaram 867-5309/Jenny sim e tocaram, sim, outra música que eu não sabia qual era não.

Sei que essa música tinha uma letra triste, que soava como uma despedida, mas eu não reconhecia, não sabia de quem era. Por anos, tentei descobrir que porra de música era essa até que um dia alguém me mostrou a gravação de Seasons In The Sun, de Terry Jacks e, na primeira orelhada, dava pra saber que era ela.

O que ainda me impressiona, mesmo onze anos depois, é a capacidade de Kurt tinha para dizer tudo com músicas. Ele sabia tanto de música e conhecia tantas músicas que podia dizer o que quisesse apenas colocando algumas delas em uma ordem específica. Poderiam ser músicas dele mesmo ou covers, como essa Seasons In The Sun.

Olhando daqui, com esses olhos de onze anos depois, com a letra de Seasons In The Sun na mão, aquele momento de alegria único ganha uma mácula, uma mancha vermelho-sangue, porque eu juro que achei aquilo tudo muito engraçado e, depois que rolou aquele quebra quebra no palco, eu fui lá pegar um pedaço da guitarra dele. Foi nessa hora que eu percebi todo o L7, Anthony Kiedis, Flea e mais um monte de estrelas das outras bandas, achando tudo uma comédia.

Era tudo lindo para nós, que estávamos em nossa época mais ensolarada, mas as estrelas que a gente podia alcançar eram só estrelas do mar, agonizando na areia da praia.

Este texto foi publicado originalmente na Coluna do Meio, do site Rockwave.

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