Por Larissa Catharine Oliveira
Quando se pensa no metal brasileiro atual, existem algumas bandas que se destacam como representantes do poder da música pesada do nosso país ao redor do mundo. Se essa posição foi quase exclusiva do Sepultura por muitos anos, hoje há mais nomes da nossa cena que ocupam esse lugar. Para motivo de muito orgulho dos headbangers daqui, Crypta é uma delas, trazendo um death metal potente e com propósito político e social.
Formada em 2019, pouco tempo antes de Fernanda Lira e Luana Dametto oficializarem a saída da Nervosa (que também é uma joia brasileira), Crypta já ganhou os principais palcos do mundo do metal com o som implacável e complexo, do Wacken Open Air (Alemanha) ao nosso Rock In Rio. A formação é completada por Tainá Bergamaschi e agora a segunda guitarrista Jéssica Di Falchi, recentemente oficializada no line-up.
Com os primeiros anos de existência durante tempos de pandemia e um cenário político instável e ameaçador no Brasil, o álbum Echoes of The Soul (2021) apresentou o som da Crypta ao mundo e mostrou a capacidade da banda de revolucionar no metal extremo não apenas por ser formada por mulheres em um cenário ainda majoritariamente masculino (e machista), mas também por mostrar na prática como uma visão política aguçada beneficia a composição ao mostrar os horrores da sociedade atual.
É como Fernanda explicou em entrevista ao The Wikimetal Happy Hour, em 2021: “Sempre que me perguntam em entrevistas na gringa assim, ‘Por que que o metal brasileiro é tão especial, o thrash, por que tem uma agressividade que ninguém mais consegue?’, e eu falo: ‘é raiva’. Não dá para ter paz nesse país, principalmente ultimamente. Acho de verdade que a gente fica tão impregnado no dia a dia, e a ferramenta que a gente tem é a nossa arte, então é a nossa melhor maneira de se expressar, acho que essa brutalidade no som e crueza, agressividade tem tudo a ver com inconformismo, talvez até subconsciente”.
Dando continuidade ao nosso debate sobre a relação entre política e metal, tema do Wikimetal na mais recente coluna aqui no Omelete e também em nosso episódio #350 do podcast, trazemos aqui uma análise das letras da banda que refletem sobre as mazelas da fome, a violência da colonização no Brasil e as dores invisíveis dos povos refugiados para levar adiante o debate proposto pela banda.
O death metal é um subgênero extremo do heavy metal com técnica complexa, vocais guturais e letras controversas: sempre sombrias, algumas bandas cantam descrições gráficas de violência, crimes hediondos e a morte enquanto o terror final. Mesmo sendo fã de bandas como Cannibal Corpse e Napalm Death, a baixista, vocalista e compositora Fernanda Lira procurou fugir desses temas “gore e de satanismo”, investindo na morte como um conceito de renascimento e renovação de ciclos ou como motor para falar de questões sociais que ameaçam a existência de diversos grupos.
Logo na abertura do álbum, a visão política da banda entra em cena para comprovar que a raiva e indignação perante as injustiças sociais são combustíveis poderosos para uma música potente. “Starvation” descreve os momentos finais de uma pessoa prestes a morrer de fome, narrando os sintomas desesperadores de fraqueza, náuseas e tremores. “Eu deveria prosperar, não morrer de fome / O pior flagelo da humanidade - a fome”, diz o refrão.
A realidade do horror descrito nessa música bate à nossa porta. Nos último anos, a insegurança alimentar no Brasil ganhou proporções absurdas: conforme divulgado pela TV Senado, o relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) deste ano aponta que existem hoje 61 milhões de brasileiros com dificuldade para se alimentar e três em cada 10 brasileiros não têm certeza se vão fazer a próxima refeição. Entre os anos de 2019 e 2021, foram 15 milhões de pessoas passando fome em nosso país, fruto do aumento da desigualdade social e da falta de políticas públicas.
“Feijão, arroz e a salsicha, que eu vendi meu fogão para eles comerem. Vendi o fogão velho para comprar salsicha para eles. Ganhei R$ 14”. Esse relato, que mais parece um trecho de Quarto de Despejo, diário dos sofrimentos enfrentados por Carolina Maria de Jesus enquanto mãe e catadora de papel em uma favela da década de 1960, foi feito em julho de 2022 por uma mãe desempregada entrevistada pelo Jornal Nacional, da Globo.
Com o nível de fome crônica em 4,1%, o Brasil está de volta ao Mapa da Fome divulgado pela ONU. Ao mesmo tempo, a produção de comida nas lavouras e pecuária brasileira só cresce, como aponta matéria da Folha de São Paulo: “há mais matéria-prima de comida por cabeça ou boca, mesmo se descontada a quantidade destinada a exportações”, mas a fome se espalha pelo país.
Mais adiante no álbum, Blood Stained Heritage é outra pancadaria sonora com uma letra extremamente relevante - e não menos revoltante. A composição revela a “herança manchada de sangue” do violento processo de colonização do Brasil, diferente da historinha contada de uma boa convivência entre os povos que resultou na miscigenação que é traço da população brasileira.
Na letra afiada da Crypta, o retrato é bem mais fiel à realidade do que o romance Iracema, de José de Alencar, e os livros didáticos das escolas. “Uma história tão violenta manchou o passado e o presente / Atrocidades se perpetuam em nosso genoma / Miscigenação fruto de abuso sistemático / Romantizado para esconder o horror”, resume a banda sem exageros.
Apesar de ser de conhecimento comum que o brasileiro tem no sangue a mistura dos europeus, indígenas e pretos, muitos esquecem de contextualizar o cenário de violência, exploração, estupro e escravidão, uma herança vergonhosa tão profunda que está provada no genoma das pessoas do Brasil, como mostrou um estudo do projeto DNA do Brasil.
O estudo de sequenciamento de genoma de mais de 1,2 mil brasileiros de todo o país mostra que a herança materna é majoritariamente africana e indígena, enquanto 75% da paterna é de origem europeia. Segundo especialistas entrevistados pela Tilt, esses dados mostram como a colonização exterminava homens nativos e pretos, enquanto os colonizadores abusavam sexualmente das mulheres desses povos oprimidos.
Infelizmente, essa história de desigualdade e violência segue verdadeira no contexto atual do Brasil, marcado pelo racismo estrutural e em um momento de constante ameaça aos poucos direitos indígenas conquistados. Ainda hoje, a violência sexual contra meninas e mulheres indígenas é uma realidade pouco falada, enquanto mulheres pretas somam o maior percentual de vítimas desse tipo de crime.
E os sons politizados da Crypta não param aí. Em “I Resign”, único single após o lançamento do álbum de estreia, a banda fala sobre um fenômeno triste que afeta crianças de famílias refugiadas: a misteriosa Síndrome da Resignação, que só tem casos registrados na Suécia, e coloca crianças aparentemente saudáveis em um estado vegetativo semelhante ao coma como forma de lidar com o trauma da insegurança que levou a família a buscar refúgio.
A condição é retratada no documentário A Vida em Mim, da Netflix, e inspirou a letra da música. “Asilo eu procuro de uma realidade intolerável / Abrigo eu procuro de sofrimento inevitável / Desamparado neste limbo / eu me resigno”, resume bem a letra.
De acordo com matéria do El País, existem vítimas crianças e adolescentes desse estado de apatia. As crianças de famílias refugiadas se tornam quietas, desinteressadas no mundo ao redor e, aos poucos, param de comer e beber, caindo nesse coma emocional, dependendo completamente de cuidados externos e de alimentação por sonda.
A ciência ainda tenta entender as causas desse fenômeno tão chocante, mas estudiosos apontam que é uma forma de autoproteção do cérebro das vítimas, que chegam a permanecer por dois anos nesse estado, geralmente apenas retornando à consciência meses após a situação de instabilidade familiar ser solucionada.
É, se você nunca prestou atenção nas letras da Crypta antes, a densidade e urgência desses assuntos pode te surpreender e assustar, mas também mostra como existem motivos de sobra para que tantas bandas usem a música como plataforma de ativismo político: quando se tem espaço em palcos, na mídia e na internet, como não falar do que precisa ser falado?
WIKIMETAL RECOMENDA
Outra banda que representa o metal brasileiro muito bem no exterior é o Claustrofobia, que lançou o álbum Unleeched, primeiro trabalho completamente em inglês da carreira, pela Metal Assault Records e com distribuição no Brasil pelo Wikimetal Music.
Gravado durante a pandemia, em Los Angeles, nos Estados Unidos, o disco teve a produção assinada por Adair Daufembach, que já trabalhou com bandas como Hangar e Project46, em conjunto com a própria banda.
Com exclusividade ao Wikimetal, Marcus D’Angelo detalha cada faixa presente do novo álbum em um faixa-a-faixa, explicando o conceito por trás de cada uma das nove canções, além de contar algumas curiosidades sobre o trabalho. Clique aqui para conferir.
PARA OUVIR
Em época de eleições no Brasil, a polêmica sobre a relação entre rock, metal e política se torna inevitável mais uma vez. Com muitos artistas e bandas que usam a plataforma da música como forma de ativismo, a polarização também chega aos headbangers quando o assunto é misturar música e política.
No episódio #350 do podcast Wikimetal, a equipe do site fala sobre o tema, comenta casos polêmicos de bandas, como as manifestações no Rock In Rio, o histórico de Roger Waters e as divergências no System of a Down, trazendo também as opiniões de quem acompanha o site com base na enquete do Wikimetal sobre o tema e comentários coletados nas nossas redes sociais.
O podcast está disponível no Spotify e Deezer, mas você também pode ver o time do Wikimetal gravando o episódio no YouTube.
SOBRE O WIKIMETAL
Fundado em 2011, o Wikimetal se tornou o maior portal de conteúdo próprio do segmento de rock e heavy metal do país. Atualizado diariamente com notícias, quizzes, enquetes, textos, entrevistas e cobertura de shows, o portal busca informar o público sobre o mundo musical além de apresentar uma visão sobre como a música se coloca em nossa sociedade.