Criar melodias que se sentem mais em casa às duas da madrugada em um barzinho de karaokê escuro, naquele momento específico em que os frequentadores - calibrados na medida certa com álcool - se sentem impelidos por uma força quase sobrenatural a jogar os braços para cima e balançá-los de um lado para o outro enquanto berram o refrão a plenos pulmões… taí uma arte em extinção. O equilíbrio delicado de simplicidade e intensidade emocional, de repetição e variação, de universalidade e especificidade - no cenário autocentrado e temperamental do pop ocidental da atualidade, ninguém mais está interessado em puxar essas cordinhas. Bom, ninguém a não ser Lady Gaga.
“Die With a Smile”, lançada na madrugada de hoje (16) em parceria da cantora com Bruno Mars, já foi chamada de “sequência espiritual de ‘Shallow’” pelos jornalistas de cultura pop - mas tem muito pouco a ver, melódica ou instrumentalmente falando, com a canção que Gaga cantou ao lado de Bradley Cooper em Nasce Uma Estrela. Tudo bem, a gente dá algumas concessões: o formato de incluir uma ponte instrumental entre os últimos dois refrões, e a divisão de linhas entre os dois vocalistas, é um pouco remanescente da composição que deu o Oscar a Gaga, mas é aí que acabam as similaridades.
Enquanto “Shallow” é tingida pelo country que os personagens de Nasce Uma Estrela representam, por exemplo, “Die With a Smile” incorpora a tradição de balada soul na qual Mars construiu a fundação de sua carreira. Com sua guitarra estourada (inclusive, a tal ponte conta com um solo inesperadamente sentido), seu pianinho propulsivo e suas harmonizações delicadas, a canção é muito mais “Talking to the Moon”, ou “Locked Out of Heaven”, do que jamais poderia ser “Shallow”.
Ao mesmo tempo, a presença de Gaga ali traz Mars de volta para a terra firme após anos de viagens soul cada vez mais ousadas e, de certa forma, eruditas. Não há nada de etéreo ou cripto-sensual em “Die With a Smile”, e até por isso ela se mostra a balada mais direta e eficiente do cantor em um bom tempo. A composição em parceria (Gaga e Mars são creditados com letra, melodia e produção) necessita talvez um mergulho menos profundo nas influências de cada um, e uma letra que trafegue mais em emoções humanas compartilhadas do que em discurso pop entrincheirado - “Die With a Smile” não é “girl, so confusing”, nem almeja tocar nos mesmos espaços que ela, e está tudo bem.
O que se ganha com a mistura das sensibilidades dos dois artistas, com a ambição mais terrena da parceria, é no fim das contas emblemático do que perdemos no Ocidente ao adentrar em um pop cada vez mais cifrado, que aposta no nicho ao invés do popularesco. “Die With a Smile” é uma canção para se compartilhar através de estratos sociais, o tipo de composição pop que cria um tecido conectivo (mesmo que ele precise ser azeitado por uns bons drinks) onde antes não existia. Ela toca e conquista no headphone, porque é um pedaço de arte íntegro, mas é feita mesmo para as caixas de som estouradas do karaokê da sua vizinhança.
E, se você não acredita em mim, só confie e espere. Quando acontecer - porque vai acontecer -, volte e me diga se não estou certo.