Morrissey, veganismo e racismo: quando o ativismo deixa de ser rock n’ roll

Música

Morrissey, veganismo e racismo: quando o ativismo deixa de ser rock n’ roll

Do hino “Meat is Murder” à vergonha em ter o veganismo representado por um racista

Omelete
6 min de leitura
06.07.2023, às 16H32.

Por Larissa Catharine Oliveira

Existe um sentimento de pertencimento quando um dos artistas que você gosta defende as mesmas pautas que você, como se o time estivesse completo e muito bem representado perante a sociedade… A não ser, é claro, que estejamos falando de Morrissey e veganismo. 

Morrissey se tornou uma figura agridoce com o passar dos anos. O cantor e compositor é um nome de relevância e influência internacional no rock, status adquirido desde o surgimento do The Smiths na década de 1980, com seu cantar único, deslizando entre tons, e letras introspectivas e de profundidade melancólica. 

Foi com a icônica banda, inclusive, que Morrissey lançou o potencial hino vegetariano: “Meat Is Murder”, faixa-título do segundo álbum da banda, de 1985. Com seis minutos de duração, a música de fechamento do disco começa com uma atmosfera sombria e perturbadora, com clipes de áudio de animais em abatedouros, uma introdução ao apelo acusatório do vocalista. “A carne que você frita tão fantasiosamente / A carne em sua boca / Enquanto você saboreia o sabor / De assassinato”, canta ao comparar o abate de animais ao crime de homicídio. 

Uma faixa contundente e clássica para além do ativismo, com méritos musicais pela delicadeza sombria, “Meat Is Murder” poderia ser o tom do ativismo de Morrissey pelos animais. Por mais dramático ou exagerado que possa parecer, uma abordagem incisiva e emocional é um dos caminhos para se provocar essa conversa, que perpassa reflexões e debates sobre o capitalismo, ética, cultura e classe.

Seria quase rock n’ roll acompanhar a seriedade excêntrica com a qual Morrissey leva o posicionamento político em defesa dos animais adiante. Por exemplo, é sabido que as casas de show onde o músico se apresenta devem servir cardápio apenas vegetariano e cenas gráficas de animais sendo abatidos são exibidas durante a performance de “Meat Is Murder”, após um breve aviso sobre o conteúdo violento que aguarda os fãs na sequência. Essas atitudes do ex-vocalista do The Smiths seriam um bom exemplo de como usar sua influência e relevância para advogar por uma causa, algo digno de admiração e entendimento, mesmo se por licença poética. Se o ativismo dele fosse apenas assim, isso seria rock n’ roll, bem do jeito Moz. 

Vegana há oito anos e vegetariana há uma década, ainda me lembro como admirei a letra de “Meat Is Murder” quando conheci The Smiths na adolescência. Ainda hoje, poucas surpresas são tão prazerosas quanto descobrir quantos artistas de rock e metal são defensores dessa pauta, assim como eu: temos Doro Pesch, Derrick Green, Alissa White-Gluz, Fernanda Lira, todos os integrantes do AVATAR no grupo dos veganos, enquanto uma lista ainda maior e surpreendente faz parte do time de vegetarianos, de Geezer Butler e Kirk Hammett a Paul McCartney

Mas no caso de Morrissey, infelizmente, a admiração por uma música de décadas atrás em prol do vegetarianismo não é capaz de apagar as declarações racistas e de pseudo misandria juvenil do cantor ao longo dos anos. Ele se tornou o lamentável ponto de convergência do câncer elitista que se espalha pelo rock e pelo veganismo - essa versão do movimento pelos animais (e do rock) é uma vergonha. 

Morrissey é porta-voz de um veganismo classista e racista. Na sua visão imatura de eu-contra-o-mundo, a crueldade contra os animais é apenas uma questão única e exclusivamente de caráter, ignorando os complexos aspectos econômicos, culturais e sistêmicos que colocam a indústria agropecuária como uma das mais poderosas forças dentro do capitalismo. 

Um dos exemplos da eugenia presente na fala de Morrissey (e muitos outros veganos, infelizmente) está na desumanização, como na absurda fala ao The Guardian, em 2010, ao criticar a forma que gatos e cachorros são comercializados e abatidos no país: “Você viu as notícias sobre o tratamento dos animais e o bem-estar animal [na China]? Absolutamente horrível. Não dá para evitar de sentir que os chineses são uma subespécie”. 

Esse é apenas um exemplo dos muitos posicionamentos racistas de Morrissey ao longo dos anos: no final da década se 1980, ele atacou artistas negros e reggae, dizendo que “reggae é uma glorificação total de uma supremacia negra” em entrevista à Melody Maker (via The Guardian); em 1992, defendeu que “brancos e negros nunca vão se entender ou gostar uns dos outros” em conversa com a Q Magazine - e como mostra o Evening Standard, a lista de falas ora polêmicas, ora criminosas, é longa. 

Com novos shows do Morrissey planejados para o Brasil em setembro de 2023, é preciso salientar como os discursos distorcidos do cantor e compositor representam um tipo de ativismo que não é rock n’ roll, apesar de protegido pelo espaço seguro criado para rockstars. Muitas vezes, aceitamos essas falas imperdoáveis como parte de um personagem, como campanhas de marketing ou parte de um carisma ácido, irresistível… Aceitável. Mas não é. 

E como o veganismo é apresentado para tantas pessoas por meio das notícias causadas pelas palavras ofensivas de Morrissey, é importante dizer: ele não é o representante único ou máximo do movimento. Existe um veganismo popular, com os devidos atravessamentos de raça, gênero e classe, capaz de oferecer uma leitura de mundo mais realista e revolucionária do que aceitar uma defesa dos animais a qualquer custo.

Nesse veganismo político, para longe da modinha good vibes ou do greenwashing das empresas, sempre ávidas por mais uma fatia do mercado, a compaixão e compromisso ético com os animais não significa atacar os seres humanos como uma criança magoada e incapaz de expressar sentimentos. É um posicionamento ciente de quão entrelaçadas nossas relações são, e de um sistema capitalista mortal, para pessoas, animais e natureza, que controla nossas vidas. 

No fim, minha vida foi marcada por “Meat Is Murder” e eu ainda me permito cantar “Heaven Knows I’m Miserable Now” quando me sinto especialmente desistente, ansiosa ou injustiçada. Músicas bem colocadas como “I’m Not a Man” me provocam um levantar de sobrancelhas educado, surpresa com a pérola produzida por uma concha tão contraditória. “The Bullfighter Dies” me provoca um sorriso cúmplice, não posso negar. Clássicos como “How Soon is Now?” ainda têm o mesmo poder de sempre quando surgem na minha playlist, apesar de tudo. Parece, afinal, que sou capaz de separar a arte do artista em muitos níveis, mas é justamente isso que me impele a dizer: Os Simpsons tinham razão em representar Morrissey como um traidor do veganismo e um racista ridículo. 

Assim como o rock n’ roll, um estilo musical (e de vida) maior do que a insignificância de quem busca perpetuar o indefensável, o veganismo é muito mais do que Morrissey em seus surtos de ódio “por amor”. 

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VIPER marcou retorno após 15 anos na última sexta-feira, 23, com o lançamento do novo disco Timeless, que já está disponível em CD na loja oficial do Wikimetal. O álbum, que sucede All My Life (2007), também é o primeiro com a atual formação composta por Leandro Caçoilo (vocal), Kiko Shred (guitarra), Pit Passarell (baixo e vocais) e Felipe Machado (guitarra) e Guilherme Martin (bateria).

O trabalho de inéditas disponibilizado via Wikimetal Music é produzido por Maurício Cersosimo e co-produzido pelo ex-membro Val Santos. A gravação do álbum ainda contou com especiais participações de outros integrantes anteriores como Yves Passarell, Hugo Mariutti e Daniel Matos, irmão do saudoso vocalista Andre Matos.

PARA OUVIR

Muita gente defende que música não deve se envolver em política, mas o fato é que rock e metal sempre abordaram temas de relevância social, com análises poderosas da realidade da história.

Por isso, o Wikimetal selecionou as melhores músicas de rock e metal (e algumas surpresas) que falam sobre esses temas tão urgentes na sociedade. Acompanhe abaixo nossa seleção abaixo – também disponível no Deezer

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