As coisas estão mudando, mas o Brasil ainda é conhecido por abrigar e aclamar shows de músicos com falência artística decretada. Aqueles que passam a vida tentando brilhar com o sucesso das suas ex-bandas. Ou aqueles que se esforçam para apagar o passado com uma nova carreira que ninguém dá muita trela. Ou ainda, aqueles que não conseguem fazer direito nem uma coisa, nem outra. Qualquer um que desembarque por aqui encontra um punhado de fãs ardorosos. A lista é imensa, basta pegar os anúncios de shows de qualquer grande jornal durante o ano.
Daí o alívio quando - uau! - um ex-Beatle aparece e chuta a bola para o alto. Duas décadas depois da sua primeira passagem pelo Brasil, Paul McCartney arrebanhou o papel para si novamente. Como se não tivesse quase 70 anos. Como se os Beatles tivessem acabado, no máximo, anteontem. Como se o mundo fosse só dele.
Paul McCartney em São Paulo
Paul McCartney em São Paulo
Paul McCartney em São Paulo
Paul McCartney em São Paulo
E, de fato, é. Pelo menos ali, onde importa.
Paul entrou no palco do Estádio do Morumbi nesta segunda-feira (22.11) para o terceiro show da sua turnê Up and Coming pelo país. Sob a chuva intermitente, elegante, de paletó roxo, topete no lugar e sorriso no rosto, trouxe seu afiado quarteto de homens de preto. E já começou com "Magical Mistery Tour", feliz novidade no setlist das apresentações brasileiras.
Não precisava de mais para agarrar o coração das 64 mil pessoas que ocupavam o estádio, acostumado a jogos de futebol mornos e shows incoerentes. Era magia, tesão, sedução, vontade, vários clichês dos bons, pipocando pelo palco. E o velhinho (que maldade falar assim...) segurando a massa por duas horas e meia sem encostar a garganta num copo d'água sequer.
Dono do seu palco, Paul é escolado. O roteiro é óbvio para quem acompanha a turnê, da ordem das músicas às piadinhas. Mas é como a reprise de um filme clássico, daqueles que você sabe quando chorar e já decorou as falas.
E como fala o rapaz. Ou tenta, enrolando a língua tal bêbado para um "oi, Brasil", "como vão vocês, paulistas", e até arriscando um mashup lingüístico com um "tudo bem in the rain?". Fofinho, avozinho brincalhão, do tipo que faz piquenique sob a jabuticabeira do quintal.
Mas o que impressiona é quando o homem resolve cantar. E aí, meu querido, é quando se percebe a tradição. Está ali, na sua frente, um dos homens que inventou o pop, remexeu o rock, criou as multidões e o frenesi, as manchetes e os boatos, as brigas e a carreira solo consistente. Um homem que até já morreu. Tudo o que veio depois é derivativo. E ele carrega esse histórico todo como se não fosse com ele. Sem afetação.
Nada ali é feito com preguiça. Cada canção é tratada como filho único, mesmo que seja um medley. Tem atenção e vontade a cada nota tocada, a cada verso gritado ao vento. E é esse o segredo da longevidade. Buda fica no chinelo.
Comandando o tempo, Paul vai e volta na sua carreira. Passa pelos Beatles, pela fase solo, pelas músicas dos amigos - e pelos próprios amigos.
Impossível não se emocionar na homenagem a John Lennon, com a bela "Here Today", música gravada logo após seu assassinato. Lennon voltaria a ser assunto mais para frente, quando "Give Peace a Chance" entra no medley de "A Day in the Life". Mais elegias: George Harrison ganha imagens no telão durante "Something", com o amigo deixando o ukulelê de lado e abrindo os braços para as fotos antigas. Ensaiado, sim. Mas quem duvida da autenticidade a uma hora dessas?
Sempre com os ex-companheiros de banda no ar (incluindo Ringo Starr que, ainda vivo, não ganha homenagem direta), Paul passeia pela coleção de hits eternos dos Beatles. "Paperback Writer" e "Lady Madonna", "Blackbird" e "Helter Skelter", "The Long and Winding Road" e "All my Loving", enquanto vai da guitarra ao violão surrado, do bandolim ao piano. Macca passa também pela sua fase Fireman ("Sing the Changes", "Highway") e com os Wings ("Band on the Run", "Jet", "My Love").
Bom demais é que não há canção que não ganhe coro maciço nas suas mãos. Seja uma porrada tipo "Helter Skelter", um lado B dos Wings ("Mrs Vandebilt"), o clássico máximo "Let it Be" ou a bobagem divertida "Ob-la-di, Ob-la-da". Simples e eficientes. Mesmo as pirotecnias (como o palco explodindo em fogos de artifício de "Live and Let Die") são meros acessórios para material de 50 anos de carreira de alguém.
E é tudo de uma sinceridade que não tem comparação. Suficiente para o público sair feliz, com vontade de abraçar o primeiro desconhecido que encontrar pela frente. Como se a vida fosse boa novamente. Como se não fosse plena segunda-feira. Como se os Beatles, na verdade, nem tivessem acabado.
Setlist
- "Magical Mistery Tour"
- "Jet"
- "All my Loving"
- "Letting Go"
- "Got to Get You Into my Life"
- "Highway"
- "Let me Roll It / Foxy Lady"
- "The Long and Winding Road"
- "Nineteen Hundred and Eight-five"
- "Let 'em In"
- "My Love"
- "I'm Looking Through You"
- "Two of Us"
- "Blackbird"
- "Here Today"
- "Bluebird"
- "Mrs Vandebilt"
- "Eleanor Rigby"
- "Something"
- "Sing the Changes"
- "Band on the Run"
- "Ob-la-di, Ob-la-da"
- "Back in the USSR"
- "I've Got a Feeling"
- "Paperback Writer"
- "A Day in the Life / Give Peace a Chance"
- "Let it Be"
- "Live and Let Die"
- "Hey Jude"
- "Day Tripper"
- "Lady Madonna"
- "Get Back "
- "Yesterday"
- "Helter Skelter"
- "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band"