Nota do Editor: Começamos agora uma nova série de textos para a seção de Música do Omelete. A ideia aqui é escrever artigos bastante pessoais que relembram grandes shows na visão de quem esteve lá e curtiu cada segundo. Para começar, um relato sobre a primeira apresentação do Paul McCartney no Brasil, vinte anos atrás.
A lambada estava na moda em todas as rádios quando Paul McCartney aterrissou no Brasil para fazer seu primeiro concerto. Era abril de 1990 e a gente – meus amigos, fãs dos Beatles, outros nem tanto e a turma arroz-de-festa – estava em clima de final de Copa. Com os ingressos para o segundo show no Maracanã na mão, batia aquela emoção adolescente de quem vai ver seu ídolo de pertinho. Todo mundo que já teve 13 anos e se lembra como era suar frio só de imaginar que o Ricky Martin (no tempo do Menudo), Jordan Knight (do New Kids on th Block) ou Nick Carter (dos Backstreet Boys) iam cantar, dançar e, incrível, respirar o mesmo ar, entende bem esse sentimento.
Paul McCartney in Rio
Paul McCartney in Rio
Para mim nenhum desses rostinhos bonitos fez sentido. Eu amava era os Beatles. Durante anos, George Harrison foi o homem mais bonito e sexy do mundo. E se fosse casar? Queria era trocar alianças com John Lennon! Ringo era o sujeito boa praça que mantinha a turma unida. E Paul era o gatinho, o cara capaz de cantar baladas como ninguém, o favorito da minha irmã. Por isso, ao lado do marido, ela encarou a mesma aventura de sair de São Paulo na manhã de sábado rumo ao Rio de Janeiro.
Embarcamos em um ônibus fretado por dois amigos festeiros, que lançaram a ideia de ver o show em galera. Os dois enfrentaram uma fila enorme para comprar 42 ingressos, o mesmo número de assentos do ônibus que faria o percurso bate-volta. Como era para ser uma festa, o bacana era chamar amigos que compravam os ingressos e dividiam o custo do ônibus. Não lembro mais quanto saía o pacote, mas a meu ver era um projeto genial. Eu fiquei até tarde na sexta assando uma torta para levar e dividir com os colegas na hora da fome, além de sanduíches. Nem parecia um grupo de adultos, aquilo era uma excursão da escola.
“Um Beatle no Brasil” era a manchete nos jornais, na véspera, dia do primeiro show. Na primeira parada em um posto da Dutra, ficamos sabendo que tinha chovido loucamente no Rio. O público encarou o mau tempo com coragem e não arredou o pé, garantia o noticiário. “A previsão indica que o tempo vai melhorar hoje”, informou o repórter da TV Globo. Uma parte do grupo nem ouviu o final direito, só os gritos de comemoração e entendeu que “ia dar Paul naquela noite”.
E deu. Dentro do Estádio do Maracanã, só se ouvia gente cantando, batendo palma, olhando do lado e rindo à toa, maravilhada por estar ali e fazer parte daquela multidão de desconhecidos – partilhando um sonho. Porque era demais acreditar que, sim, Paul estaria entre nós dali a umas horas, quando caísse a noite e as luzes iluminassem o palco gigantesco diante do gramado. Eu, que odiava lambada, até achei graça quando o sistema sonoro do estádio tocou Keoma pela quarta vez e fiquei ali, assistindo ao pessoal dançar ao som de “Chorando se foi quem um dia só me fez chorar...”. Pro inferno com a intolerância, o mau humor, a má vontade, a gente estava ali para ser hippie e se abraçar no final.
A chuva veio e foi algumas vezes até que as luzes do palco se acenderam para anunciar que o show ia começar de verdade. Ruídos, uma guitarra, bateria, bum, de repente ele estava no palco. Nos telões e nas torres, eis que surge o rosto tão conhecido e querido. “Figure of Eight” a maioria não conhecia, mas também não interessava. A gritaria foi tanta que qualquer música serviria. Eram mais de 180 mil pessoas hipnotizadas pelo inglês de sorriso infantil. Éramos eu, minha irmã, o cunhado, a menina do lado, a ministra Zélia Cardoso, todo mundo. Era Paul, o Beatle. Até que enfim.
Os metais puxaram “para-pa-para-pa-pa-pa-pa-paaaaaaa” e a gritaria parecia que não ia ter fim. “Got to Get You into my Life”, a primeira música dos Beatles da noite. Um sucesso de 1966, mas que soou tão fresquinho aos nossos ouvidos que dava a impressão de ser sucesso de rádio. Eu só fazia cantar, olhando para o palco enorme e aquela figura minúscula, no comando de tudo. “Hello Brazil!”. Nunca essa frase fez tanto sentido para mim.
Mas então veio “Jet” e o coro “uhuhuhuhuhuhu” do Maracanã era pura vibração. “Rough Ride” para assentar. Mas lembrem-se que esse cara era o mesmo garotão que aprendeu como segurar uma platéia nos cabarés de Hamburgo, tocando para marinheiros e o diabo. E ele devia ter uma boa ideia do que mais de 20 anos de espera fazem com a gente.
Paul tocou sucessos da carreira solo, “Band on the Run”, “Ebony and Ivory”, “Maybe I’m Amazed”. Mas tirou nosso chão quando emendou numa tacada “The Long and Winding Road”, “The Fool on the Hill”, “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, “Good Day Sunshine” e “Can’t Buy me Love”. Eu que literalmente furei alguns discos de tanto tocar essas músicas já teria me dado por feliz só com isso. Mas ainda teve “Things We Said Today”, “Eleanor Rigby” (“Ah look at all the lonely people”), “Back in the U.S.S.R.”, “I Saw Her Standing There”. Quando Paul tocou “Yesterday”, o estádio se iluminou com os isqueiros (sim, isqueiros, não celulares) acesos. Os namorados, amantes e amigos se abraçaram. Do meu lado, um casal começou a dançar juntinho, do mesmo jeito que devem ter feito no tempo do bailinho do bairro. E assim, de repente, eles não tinham mais 40 anos e sim 15, colados, sem enxergar mais nada, senão um ao outro. E eu pensei “é isso”.
Mas nada tinha me preparado para a última parte do show. Depois de acenar e sorrir para o público recorde que o colocaria no Guinness, Paul deixa o baixo Hoffman de lado, vai ao piano e manda: “Hey Jude”. Foi como se alguém tivesse retirado o ar do estádio. A pausa da música durou uma imensidão na minha cabeça, todo mundo puxando um “Aaaaah” emocionado. Ele dedilhou o piano e emendou o resto.
“Don’t make it bad
Take a sad song and make it better
Remember to let her into your heart
Then you can start to make it better”
Nisso, o estádio inteiro puxou de novo “Hey Jude”. Quem sabia cantava a letra toda, quem não sabia balbuciava, errava, mas não parava.
“Hey Jude, don't let me down
You have found her, now go and get her
Remember to let her into your heart,
Then you can start to make it better”
Aquele era o Beatle bonitinho dos anos 60, o compositor de mão cheia capaz de fazer todo mundo assobiar sua música para inveja suprema do parceiro. Uma música tão poderosa, sem enfeite, perfeita para cantar em estádio. E ainda assim, da melhor qualidade.
“Hey Jude, don't make it bad
Take a sad song and make it better
Remember to let her under your skin,
Then you'll begin to make it
Better better better better better better, aaaaaaaaaaaaah”“Dada da da dada da da, Hey Jude”.
E aí eu olhei do lado. E todo mundo que eu podia ver estava cantando. O telão mostrava a turma da grade cantando. Mas das arquibancadas também vinha o refrão, quase coisa de criança. E das cadeiras, dos camarotes. Nós, no meio do gramado, hipnotizados, batendo palmas no compasso, puxando o coro “dada da da dada da da Hey Jude”.
E eu, que tinha chorado tanto até ali, deixei de vez a vergonha de lado e chorei abertamente enquanto cantava. Nunca mais senti essa mesma emoção em show nenhum, ser parte de algo vivo, da multidão, sentir a eletricidade de estar vivo aqui e agora. Duas vezes cheguei muito perto. Eu enlouqueci com os Rolling Stones no Pacaembu, em 1995, e com o REM no Rock in Rio, em 2001. Senti um arrepio na espinha quando os bonecos inflaram e Mick Jagger surgiu de cartola, bem anos 70, cantando “Simpathy for the Devil”. E quando a galera cantou “Loosing my Religion”, como se estivesse nos Estados Unidos ou na Inglaterra, eu também me entreguei. Mas essa já é uma outra história.
Quanto ao Paul, eu o vi mais uma vez. E, se meu anjo da guarda achar que eu mereço, vou me juntar a outros milhares de malucos no Morumbi, com uma vozinha lá dentro dizendo: “Mais uma vez, só mais uma vez, me faça sentir que o mundo inteiro é meu, que eu posso tudo, que você está lá para cantar só para mim”. E eu vou mandar bem alto “Dada da da, dada da da, Hey Jude”.