Durante anos a fio, uma verdade permaneceu imutável na internet: bastava abrir qualquer postagem de qualquer artista estrangeiro nas redes sociais (e eu quero dizer qualquer mesmo) e você se depararia com pelo menos uma mão cheia de fãs comentando a mesmíssima frase: “Please, come to Brazil!” (“Por favor, venha ao Brasil!”).
A insistência era tanta que virou meme, tanto entre os tuiteiros brasileiros quanto entre os próprios artistas, que não raro comentavam sobre a enxurrada de comentários do tipo que recebiam em suas redes - eu mesmo presenciei KT Tunstall falando desse fenômeno no Teatro Liberdade, em São Paulo, em 2019. “Durante anos e anos, eu pegava meu telefone e tudo o que conseguia ler era: ‘Please, come to Brazil!’”, brincou a escocesa na ocasião.
Pois então, parece que o jogo virou… O ano de 2023 já viu passagens marcantes de Coldplay, Billie Eilish, Lil Nas X, Super Junior, Paramore, NCT 127 e muito mais pelos palcos brasileiros, mas a lista que mais impressiona é a de shows que ainda estão por vir: Lana Del Rey, Florence + The Machine, NCT Dream, 5 Seconds of Summer, Bruno Mars, Demi Lovato, The Weeknd, Red Hot Chili Peppers, RBD… e esses são só os artistas que já confirmaram data, porque Beyoncé e Madonna também podem dar as caras por aqui, segundo jornalistas especializados.
Daí que o discurso do pessoal nas redes sociais parece ter mudado - afinal, quando falávamos “please come to Brazil”, não esperávamos que ia vir todo mundo ao mesmo tempo, né?
please stop coming to brazil pic.twitter.com/AuRnTTvKE6
— ✿ mayarinha ✿ (@mcfmaya) January 31, 2023
Enfim, para entender como chegamos ao ponto de dizer “por favor, parem de vir ao Brasil!”, o Omelete conversou com líderes de promotoras de evento, responsáveis por trazer muitos dos nomes que listamos acima para cá, e também com jornalistas que acompanham de perto essa indústria. O que descobrimos foi bem interessante...
Crise de abstinência
A palavra que mais se repete na hora de explicar essa avalanche de shows no Brasil não é nada surpreendente: pandemia.
“Foram anos de muita dor e medo, onde o entretenimento ao vivo se tornou segundo, terceiro, quarto plano. As pessoas tinham outras preocupações, estavam apavoradas e a ideia de sair de casa começou a se tornar inimaginável. Imagina ir a um show, então?”, reflete Matheus Izzo, jornalista e curador que tem conquistado a confiança do público nas redes sociais com sua cobertura de eventos ao vivo. “A partir do momento em que o mercado voltou a ser aquecido e as coisas retornaram ao ‘normal’, todo mundo começou a querer correr atrás do tempo perdido.”
Apesar dos shows já estarem oficialmente liberados desde o começo do ano passado (o Lollapalooza 2022 foi o primeiro evento massivo do tipo no Brasil desde a eclosão da pandemia de covid-19), demorou um pouco para esse segmento do mercado “pegar no tranco”.
“Considerando que o ‘novo normal’ começou de fato no final de 2021, a gente vê que já em 2022 houve muitos shows internacionais, mas as negociações levam tempo”, explica Carol Marins, jornalista do We In the Crowd, site de cobertura de eventos ao vivo no Brasil e no exterior. “Devemos considerar que esses artistas, que para nós são internacionais, estavam retornando à ativa primeiro com shows nos seus respectivos países, o que vai fechando as agendas.”
Do outro lado da mesa, as próprias produtoras confirmam o status de 2023 como um ano atípico para os shows internacionais no Brasil. “O que podemos ver hoje é um misto de novas atividades e projetos que estavam prontos para acontecer entre 2020 e 2021, e agora estão saindo do papel”, aponta Luiz Guilherme Niemeyer, sócio-fundador da Bonus Track, responsável pelo MITA Festival e pela turnê de Roger Waters no Brasil, entre outros eventos de entretenimento ao vivo.
“É o resultado de um segmento com força total para reaquecer e um público ávido por consumir diversão e cultura”, continua ele. “São muitos shows e festivais? Sim! Mas o bom disso tudo é que tem para todos os gostos.”
O fator k-pop
“Acredito que 2023 será lembrado como o ano da música do Oriente no Brasil”. A avaliação de Matheus Izzo parece justa quando o ano já trouxe gigantes asiáticos como Super Junior, NCT 127 e Jackson Wang para o nosso país, e quando a agenda de shows de k-pop, j-rock e afins segue lotadíssima para os próximos meses - confira logo abaixo.
“Aqui na América Latina, entre 2012 e 2015, nós tínhamos apenas um ou dois shows asiáticos por ano, mas entre 2017 e 2019 essa quantidade subiu facilmente para mais de 12 artistas anuais”, aponta Gonzalo García, fundador da NoiX Entertainment, que trouxe NCT 127 ao Brasil em janeiro. A empresa, segundo ele, ainda vê o nosso país como um mercado nascente na região, especialmente em comparação a México e Chile, que rotineiramente recebem artistas asiáticos em turnês internacionais.
É uma visão endossada pela Highway Star, pioneira no mercado de shows de k-pop no Brasil, que está vivendo seu ano mais agitado em 2023 - WOODZ, Mirae e MCND estão na agenda, assim como o ambicioso Asia Star Festival, o primeiro dedicado exclusivamente à música asiática no país.
“O Brasil se tornou um mercado mais conhecido dos artistas, e de modo geral eles se mostram receptivos à ideia de eventos aqui”, aponta Laiza Kertscher, porta-voz da produtora. “Mas como a distância Coreia-Brasil é algo bastante significativo para eles, por vezes ela costuma ser um entrave. Visitar o nosso país é uma possibilidade que se abre mais para esses artistas quando eles já estão em turnê na América Latina ou pelos Estados Unidos.”
Para Izzo, a questão do aumento dos shows asiáticos no Brasil é bem simples: “As produtoras perceberam que o k-pop dá retorno, essa é a real. E muito disso vem da geração mais nova que consome essa indústria, como todo mundo dos anos 1990 e 2000 consumiu a ascensão pop do ocidente. É um fenômeno. O BTS encheu mais de uma vez o Allianz Parque, coisa que bandas clássicas penam para conseguir… vide o recente show do Motley Crue com o Def Leppard, por exemplo.”
Thainá Doble, da equipe do We In the Crowd, adiciona que o poder mobilizador do público jovem conta muito, mas não é tudo: “Algo que também é perceptível é um aumento, mesmo que sutil, da idade do público, que vem crescendo junto com a fama do gênero. Quem não conhece a audiência costuma sempre se assustar ao ver a quantidade de pessoas mais velhas que frequentam um show de k-pop. E a impressão que dá é que, finalmente, essa galera mais antiga pode pagar por esse tipo de evento.”
Ai, minha carteira!
O intervalo de quase três anos entre a paralisação pandêmica e a retomada total do mercado de entretenimento ao vivo implicou também em um choque monetário - em bom português, os ingressos estão muito mais caros do que eram lá em 2019. O show do aespa, atração de k-pop mais recente a ser anunciada no Brasil, sai por R$ 940 no setor premium para quem paga inteira; para conferir a passagem de Roger Waters por São Paulo nas mesmas condições, os fãs precisarão desembolsar R$ 990.
No país em que o salário mínimo acaba de subir para R$ 1.320, não é difícil perceber porque tanta gente já se vê barrada desse tipo de entretenimento. “[Até] para quem tem mais ou menos condição, é difícil conseguir ir em mais de um festival, ou em vários shows em um período curto de tempo. Me incluo nessa. É caro. Vivo por música e show, então, abro mão de uma coisa ou outra para conseguir ir, mas e para quem não tem essa possibilidade?”, reflete Matheus Izzo.
“Eu acredito que esse assunto possui várias camadas e que o Brasil dificulta o acesso com a desigualdade social enraizada no país, com a baixa valorização do setor cultural nos últimos quatro anos de governo, muitas outras coisas”, continua. “O aumento do número de shows por aqui só evidencia mais e mais essa discrepância. Produtora trazendo show a rodo, várias opções para ver ao vivo, e a minoria do público conseguindo ir nos eventos ou em mais de um deles.”
A popularização do formato festival, inclusive, tem peso extra nessa balança. Se antes o Brasil era rota apenas de alguns eventos do tipo (Rock in Rio, Lollapalooza), agora eles se multiplicam (C6 Fest, MITA, Primavera Sound, The Town, GRLS, Popload) - e, até pela experiência que propõem oferecer ao público, acabam sendo ainda mais caros. O MITA, que começa no próximo dia 27 de maio no Rio de Janeiro, tem ingressos de pista premium por até R$ 1.990.
“Diferente de um show ou uma turnê, o festival é um ambiente de troca, de absorção de tendências, de comportamento, de moda, de música, entre outros. Esse formato permite que o público viva diferentes experiências em um mesmo evento, muitas vezes tendo contato com atrações musicais que não conhecia, por exemplo”, explica Luiz Guilherme Niemeyer. “Além do line-up dos palcos, os festivais trazem uma série de ativações para entreter esse público, muitas realizadas pelas marcas patrocinadoras.”
“Os custos de grandes produções no país são realmente altos e temos nos shows internacionais o impacto da variação de câmbio. Buscamos oferecer um preço que seja factível para o público e que também nos dê a garantia de poder entregar uma produção com o nível de excelência que tanto os fãs como os artistas esperam”, declara ainda.
A linha de raciocínio é seguida por outras produtoras de eventos. A Highway Star cita que as passagens aéreas para os músicos e suas equipes estão duas vezes mais caras do que antes da pandemia, mas frisa que - assim como ocorre no MITA - aplica a política do ingresso social, no qual os fãs podem pagar mais barato mediante doação de alimentos, ração ou parcerias com instituições de caridade. A NoiX aponta para altos custos com hospitalidade de artistas e equipe, e revela que, mesmo com 80% dos ingressos de um evento vendidos, a empresa ainda pode sofrer prejuízo.
Um outro caminho?
Na contramão disso tudo, Julia Henriques, da equipe do We In The Crowd, cita dois casos recentes que mostraram o sucesso de uma política de preços mais baixos. Um foi a passagem da banda americana The Maine pelo Brasil, marcada para agosto - após negociação com a promotora Solid Music, os artistas colocaram ingressos à venda entre R$ 75 (meia-entrada, pista comum) e R$ 220 (inteira, camarote).
“O feedback desse anúncio foi um site sobrecarregado e ingressos esgotados em 20 minutos. Nos grupos e nas redes foram muitos relatos de pessoas que não ouviam a banda há anos, mas compraram por conta do preço, levando em consideração que estava mais barato até que muitos shows nacionais da atualidade”, comenta Julia.
Outro caso foi a turnê de reunião do NX Zero, que colocou ingressos a venda por até R$ 50 em sua passagem solo em São Paulo (antes, eles só passariam pela capital paulista para o MITA). A demanda foi tanta que um show extra foi anunciado pouco depois.
Julia aponta que os prazos curtos para compra de ingressos também não ajudam: “As vendas são sempre próximas [ao anúncio]. Se não no dia seguinte, costumam abrir 2 ou 3 dias após o anúncio. Na maioria das vezes, esses fãs não estão preparados para gastar um valor tão alto no curto prazo. E a situação piora quando o promotor do evento decide colocar a opção de juros no parcelamento.”
“O que a gente mais vê atualmente é fã que se endivida porque não quer perder a chance de realizar o sonho. Infelizmente é a situação em que todos se veem presos, e as promotoras sabem que podem fazer isso já que o público que tem condições de arcar com um ingresso de show, no desespero, fica rendido e acaba cedendo”, completa.
O jeito, aparentemente, é torcer para que os artistas gringos ouçam a nova mensagem das redes sociais, assim como ouviram a antiga: Por favor, parem de vir ao Brasil (ou, pelo menos, esperem um pouquinho).