Texto por Erica Y. Roumieh
O fã de metal tem uma reputação injusta que o acompanha desde a criação do gênero: ela é cravada no pressuposto de que o heavy metal é a música do Satã e os músicos e fãs se dedicam a cultuar essa imagem incitando violência e adoração ao diabo. Essa ideia é errônea e rasa.
Os elementos que sustentam essa reputação são dos mais variados tipos, desde as roupas escuras, as tatuagens, o som pesado, o gutural e até mesmo as letras. O metal de fato traz imagens mais obscuras, porém sua motivação não está no culto ao diabo, e sim na característica inconformista do rock, que se apresentava vigorosamente contra o moralismo cristão de sua época. O rock se tornou um símbolo anti-sistema durante os anos 1960, pregando especialmente a exploração dos prazeres terrenos, como o sexo e as drogas. Algo que ia na contramão da religião.
As letras das músicas
Um dos argumentos mais usados na hora de acusar o heavy metal de "a música do Satã" é a própria relação do gênero com assuntos religiosos. Assim como muitos outros estilos musicais e outras formas de arte, o metal assume uma posição de abordar o assunto de forma mais clara: bandas religiosas usam sua música para espalhar suas crenças, enquanto outras bandas a usam para questionar ou criticar a religião. E aqui falamos de cristianismo, ocultismo, bruxaria, islamismo, etc.
Bandas como Skillet abordam temas religiosos e, mais especificamente, cristãos, em suas músicas. "Monsters", por exemplo, do álbum Awake, de 2009, tem um clipe marcado pela violência quando na verdade se trata apenas de um questionamento interno do personagem e sua busca pela salvação. "Eu sinto isso lá no fundo, está logo abaixo da pele / Devo confessar que me sinto um monstro / Eu odeio o que me tornei, o pesadelo apenas começou", canta Skillet enquanto pede ajuda para redenção: "Por que alguém não vem e me salva disso, faz isso acabar?". Uma história relativamente comum na humanidade fica encoberta pela violência que a música aparenta demonstrar.
O Iron Maiden não é uma banda religiosa, mas com seus temas diversos sofreu sua parcela de controvérsia e preconceito. O título de seu álbum de 1982, The Number of the Beast, e o uso repetido de "666" (o número da besta) no refrão da faixa-título deixaram os religiosos bem incomodados. Eles acusaram o grupo de serem adoradores do diabo, satanistas e de "tentar perverter nossos filhos". "Quando toco essa música, penso, bem, ok, isso não é glorificar o diabo, porque certamente não é o que eu faria", diz o baterista Nicko McBrain, abertamente cristão. "É conscientizar que sim, ele está por aí, e você deve estar ciente. Há um homem com 666 tatuado em algum lugar." Bruce Dickinson, vocalista da banda, ainda vai mais a fundo ao explicar a intenção por trás da música: "Queremos ser interessantes e estimular a imaginação das pessoas com as histórias que contamos e nossas músicas."
"The Number Of The Beast" é sobre a conscientização que existe um diabo solto por aí, qualquer que seja sua forma, mas há um significado alternativo sendo divulgado, muito mais raso. Por carregar essa imagem pesada, a música acaba tendo mais visibilidade que "Alexander The Great", do álbum Somewhere In Time (1986), que é uma grande aula de história sobre este personagem tão famoso. E esse na verdade é o tema mais comum nas músicas do Iron Maiden. O interesse dos integrantes por história ressoa não apenas nas letras, mas também nas capas dos álbuns e na cenografia dos shows, embora essa não seja a imagem que fique para muitos. A percepção que as pessoas têm do metal vem de um lugar de choque, de medo. A música que carrega o número da besta atrai muito mais atenção do que músicas sobre história dos mais variados tipos.
Outro ponto importante a ser explorado é como muitas canções de metal são mal interpretadas para serem encaixadas em um espectro perigoso. Como bem pontuou William Irwin, autor de Black Sabbath e a Filosofia, durante o episódio #148 do podcast do Wikimetal, as pessoas "sempre querem focar no lado demoníaco da música". Um exemplo disso, segundo ele, é a música "After Forever", do álbum Master of Reality (1971), do Black Sabbath. Ela conta sobre a situação na Irlanda do Norte na época, onde havia um "conflito religioso entre os católicos e protestantes", lembra Tony Iommi, compositor da canção, em uma entrevista. "Fui criado na igreja católica e imaginava que as religiões não deveriam competir umas com as outras. Sempre senti que Deus e Jesus queriam que nos amássemos uns aos outros". Iommi explica que escolheu contar essa história pois naquela época "todos falavam sobre as coisas boas do mundo e queríamos injetar uma dose de realidade na música". Porém, a canção ficou mais conhecida pelo "papa enforcado" que é brevemente citado. Sua história completa não é escutada e dessa forma a mensagem negativa sobre o metal se torna mais eficaz.
Outra canção mal interpretada do Black Sabbath é "Snowblind", do Vol. 4 (1972). Muito se diz que ela é uma das músicas que incentivam adolescentes e jovens a usarem drogas e irem "para o caminho do mal". A canção faz o oposto disso: ela alerta quem está ouvindo dos perigos das drogas e espera incentivar o contrário. "Algo soprando na minha cabeça / O gelo do inverno logo se espalhará / A morte congelaria minha própria alma / (..) / O sol não me liberta mais / Eu sinto que não há lugar para me congelar".
Condenação do fã de metal
Se você não é fã de metal, é possível que você ouça Cannibal Corpse, por exemplo, e queira argumentar que a banda incita sim a violência. Músicas com títulos horrendos como "Stripped, Raped, and Strangled" quando junto à imagem pesada de zumbis, morte e violência é, no mínimo, extremo. Mas o mesmo preconceito não é transmitido a Shinki Mikami, criador do videogame Resident Evil, um jogo extremamente violento. Ou então a George A. Romero, criador da franquia de filmes Night of the Living Dead. Ambos exemplos são violentos, mas facilmente interpretados como ficção e fantasia.
Claro que existem também problemáticas de alguns artistas no meio do metal. Histórias de abuso e violência não serão abordados aqui, pois estes acontecem, infelizmente, em todos os âmbitos dentro e fora da arte. Mas um exemplo sintomático de como a régua parece ser diferente com o metal é de como a carreira de mais de 50 anos de Ozzy Osbourne é resumida ao morcego que ele acidentalmente mordeu durante um show em 1982. O Príncipe das Trevas nunca tentou se afastar da história (até porque seria impossível), mas explicou diversas vezes que não mordeu o morcego acreditando ser de verdade. Osbourne achou que algum fã havia jogado um morcego de mentira no palco durante seu show em Des Moines, Iowa. Infelizmente, o morcego era de verdade e apenas voou em direção ao músico, e Ozzy só percebeu isso quando colocou o animal na boca. Desde então, o nome dele está sempre relacionado a essa loucura.
Metal como bode expiatório
Entre os momentos mais polêmicos e preconceituosos do gênero, houve casos de acusações de promover o suicídio, incentivar crimes hediondos (como o Pânico Satânico) e até culpa por tiroteios em massa em escolas nos Estados Unidos. Por que isso acontece? Para o antropólogo, documentarista e headbanger Sam Dunn, conhecido por Metal: A Headbanger's Journey, o heavy metal é frequentemente usado como bode expiatório para desviar a atenção dos problemas sociais mais complicados que cercam tais incidentes. "Acho que as pessoas olham para o heavy metal e o rotulam para todos os tipos de coisas porque precisamos de respostas fáceis para questões complexas", diz Dunn. "Eu acho que é mais fácil acusar uma banda de heavy metal por incitar a violência ou fazer as crianças se voltarem para um culto do que realmente olhar para problemas reais no mundo real."
Comportamento e personalidade do fã de metal
Incompreendidos por sua aparência, erros e letras mal interpretadas, o fã de metal é automaticamente julgado como violento e satanista e pesquisas foram atrás de descobrir se essa é uma verdade.
Divulgado pelo Very Well Mind, um estudo apontou que os fãs de metal na verdade são pessoas gentis. A pesquisa teve o objetivo de traçar uma ligação entre as nossas personalidades e o tipo de música que ouvimos. Foram estudados 104 gêneros musicais e cinco traços de personalidade: aberto à experiência, consciencioso, extrovertido, amigável e neurótico. A pesquisa aponta que "apesar do metal projetar imagens de raiva, bravura e agressividade, verificou-se que os fãs são pessoas gentis e criativas, mas introvertidas e com baixa auto-estima".
Essa gentileza, baixa auto-estima e paixão por metal foi bem representada na quarta temporada de Stranger Things com o personagem Eddie Munson. Ao mesmo tempo que representou o início da culpabilidade do fã de heavy metal no Pânico Satânico, ele carregou a imagem do headbanger incompreendido, que gerou um apego dos fãs. Munson poderia ser qualquer fã de metal em qualquer época e lugar. Dessa vez, ao ser desprezado pelos personagens da série, os espectadores o viram pelo o que ele realmente é e derrubaram seus preconceitos sobre fã de metal por um momento. Inclusive esse afeto o tornou um grande símbolo, com seguidores de todos os cantos o venerando.
Popularidade do metal
O metal foi demonizado por nadar contra a corrente e questionar as normas tradicionais. Flertar com o extremo é uma característica desse contrafluxo, uma forma de chamar a atenção para a discordância. O resultado, porém, foi ser usado como bode expiatório, como satanista, violento, algo para as pessoas ficarem longe. Felizmente, mesmo com todo esse preconceito e julgamento, o fã de metal pôde criar uma comunidade ativa e divertida.
A popularidade do gênero pode não parecer tão grande quanto a do pop a olho nu, mas ao receber bandas como Iron Maiden e Metallica em estádios por todo o Brasil com ingressos esgotados, é possível ver que a força do metal ultrapassa as polêmicas. Festivais como Monsters of Rock, que voltará em 2023, Summer Breeze que terá sua estreia no Brasil no mesmo ano e Knotfest que teve sua primeira edição em dezembro e foi de tanto sucesso que já foi confirmada sua segunda edição no país, são motivos para serem celebrados.
Na comunidade global, temos shows e festivais de metal enormes acontecendo a todo o momento. Para citar alguns eventos temos o Wacken Open Air que acontece anualmente na Alemanha desde 1990, o Download Festival que acontece todo ano no Reino Unido desde 2003, Rock am Ring e Rock Im Park que acontecem simultaneamente na Alemanha todo ano desde 1985. Estes festivais celebram o metal de forma grandiosa e segura. Não há sacrifícios de animais nesses eventos. Não há culto a nenhuma entidade se não ao heavy metal.
Como Sam Dunn disse no documentário Metal - A Headbanger's Journey enquanto presencia um festival de metal: "O metal confronta o que preferimos ignorar. Celebra o que muitas vezes renegamos e é indulgente com aquilo que mais tememos. E é por isso que o metal sempre será uma cultura dos marginalizados."
"Se o metal não te provoca essa envolvente sensação de poder e não faz com que se arrepiem os cabelos da nuca, talvez nunca o compreenda. E sabe o que mais? Tá tudo bem. Porque, a julgar pelos 40.000 metalheads que me rodeiam, estamos muito bem sem você."
WIKIMETAL RECOMENDA
O trio de rock instrumental Macaco Bong lançou no último 1º de dezembro o disco Live Garage. Com apenas 5 músicas, mas 40 minutos de duração, a banda se reinventou em um trabalho que traz influências de metal e riffs intensos. As faixas do disco formam uma história “sem fim”, prendendo o ouvinte em cada segundo e o levando em uma aventura hipnotizante.
A banda planeja um complemento a esse disco; em 2023, um segundo volume do Live Garage será lançado. A continuação do disco será composta por uma seleção de músicas de todo o catálogo da carreira da banda, regravados nesse mesmo formato que prioriza a energia “ao vivo”, e contando também com uma faixa inédita.
Live Garage é um lançamento do selo ForMusic Records.
PARA OUVIR
2022 foi um ano de muitos lançamentos e acontecimentos no mundo do rock e do metal. Entre alguns dos mais emblemáticos estão Slipknot, Megadeth, Ratos de Porão, Halestorm, Black Pantera e muito mais.
Com a participação de Daniel Dystyler (co-fundador do Wikimetal), Erica Y. Roumieh (editora-chefe), Gabriela Marqueti (repórter) e Pedro Tiepolo (label manager) o episódio #353 do Podcast Wikimetal discute alguns desses lançamentos e muitos outros na nossa retrospectiva com destaques de 2022.
O podcast está disponível no Spotify e Deezer, mas você também pode ver o time do Wikimetal gravando o episódio no YouTube em vídeo. Todas as músicas que tocam no episódio estão em nossa playlist especial, também disponível no Spotify e Deezer.
SOBRE O WIKIMETAL
Fundado em 2011, o Wikimetal se tornou o maior portal de conteúdo próprio do segmento de rock e heavy metal do país. Atualizado diariamente com notícias, quizzes, enquetes, textos, entrevistas e cobertura de shows, o portal busca informar o público sobre o mundo musical além de apresentar uma visão sobre como a música se coloca em nossa sociedade.
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