“O rock é preto e esse espaço é meu”: a música pesada é das mulheres negras

Créditos da imagem: Reprodução/Facebook

Música

“O rock é preto e esse espaço é meu”: a música pesada é das mulheres negras

Hoje consideradas minoria nesse gênero, as mulheres pretas foram as pioneiras do rock e sofreram apagamento histórico

Omelete
11 min de leitura
20.10.2022, às 14H33.

Texto por: Gabriela Marqueti

A música pesada pertence às mulheres pretas por direito. Foram as vozes delas que criaram as bases para o rock, o blues e o country, mas, atualmente, são consideradas minoria na cena do rock e metal. Estão presentes, mas nem sempre são reconhecidas; ocupam seu espaço no gênero, mas sem receber muitos lugares de destaque ou cobertura midiática.

Recentemente, a jovem cantora Willow - filha de Will Smith e Jada Pinkett-Smith - deu uma declaração interessante à revista Guitar.com. Willow lançou no início de outubro o álbum <COPINGMECHANISM>, seu segundo projeto seguindo tendências punk e alternativas baseadas no rock e hardcore. Ao falar sobre seu lugar na música pesada, ela apontou a predominância de “homens brancos e mais velhos” no gênero como uma consequência dessas mesmas pessoas terem agido como “guardiões” do metal ao longo dos anos, não abrindo espaço para pessoas de cor.

Na ocasião, Willow reforçou que “o rock é para todos” e que pretende “trazer seu povo para esse espaço” - uma ideia que ela já tinha expressado em 2021 ao lançar seu primeiro álbum com influências pop punk, lately I feel EVERYTHING. Na época, a cantora expressou especificamente sua vontade de ver mais mulheres negras no rock e se dispôs a ser uma figura de liderança para a juventude preta que queira conquistar seu espaço na música pesada.

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Este é um espaço, porém, que não deveria precisar ser reconquistado. Se o rock existe e serviu como base para gêneros ainda mais desafiadores como o metal, foi por influência e excelência das mulheres pretas que foram as grandes pioneiras do gênero. 

Uma das mais emblemáticas sem dúvida foi Sister Rosetta Tharpe - uma das artistas mais influentes das décadas de 1930 e 1940. Excelente guitarrista, Rosetta foi referência em novos jeitos de tocar o instrumento e despejava vocais eufóricos em músicas que mesclavam de forma desafiadora o gospel e o rock. Ela serviu de inspiração e influência direta para artistas como Elvis Presley, Bob Dylan e Chuck Berry, além dos Beatles - todos nomes que se tornaram grandes ídolos do rock.

Bob Dylan, hoje considerado um dos maiores compositores de todos os tempos, também admite que uma de suas maiores inspirações foi a cantora Odetta. Nascida no Alabama, Odetta tinha um talento especial de mesclar música folk com blues e jazz desde seu primeiro álbum, The Tin Angel, lançado em 1954. Seu trabalho foi o que despertou o interesse de Dylan na música folk, segundo o artista. “Ouvi o disco Odetta Sings Ballads and Blues em uma loja de discos. Ali mesmo, naquele momento, troquei minha guitarra e meu amplificador por um violão,” conta.

Em texto publicado no canal de mídia The Establishment (fundado e gerenciado por mulheres), a autora Latonya Pennington reflete sobre o apagamento dessas e de outras mulheres pretas essenciais para o rock 'n roll e os motivos pelos quais ele passou a ser um gênero musical associado a homens brancos.

Ela cita como referência o livro "What Are You Doing Here?: A Black Woman’s Life and Liberation in Heavy Metal", escrito pela jornalista musical Laina Dawes. Em seu trabalho, Dawes aponta que parte do motivo foi que a juventude branca passou a se interessar por rock 'n roll e blues em uma época ainda muito segregacionista, quando artistas pretos não podiam cobrir essa demanda nas rádios porque não ganhavam espaço e não eram bem recebidos por brancos. Para atender à demanda, versões de canções do blues rock negro passaram a ser comercializadas na voz de artistas brancos da época, como foi o caso de “Hound Dog”, de Big Mama Thornton, que se popularizou na voz de Elvis Presley, e, alguns anos mais tarde, “Piece Of My Heart”, de Erma Franklin, regravada por Janis Joplin.

Quanto mais pessoas brancas passavam a consumir e reproduzir o rock 'n roll e o blues nas décadas de 50 e 60, ofuscando as vozes pretas de onde esses gêneros vieram, mais isso teria se tornado algo “para os brancos”, enquanto os artistas negros eram designados a gêneros musicais como o soul, o R&B e o jazz, especialmente com o surgimento da Motown. Essa designação estereotipada a um tipo específico de gênero musical teria ajudado a difundir a ideia de que o rock seria um estilo musical estranho para pessoas negras - um lugar onde não seria comum encontrá-las.

Em entrevista para a V Magazine, a própria Willow Smith comentou ter sido “treinada” para se tornar uma cantora de R&B, caminho que percorreu em seus três primeiros álbuns. Quando decidiu sair do R&B para tentar algo mais rock, ela sentiu insegurança: “Por muito tempo eu pensei, ‘Ah, acho que não vou soar autêntica. Vou soar como uma cantora de R&B tentando fazer rock’,” relata.

Willow durante performance na TV com o baterista Travis Barker

Um dos maiores exemplos de Willow na música pesada veio do ambiente familiar, assim como um certo receio de entrar nesse gênero. Sua mãe, a atriz Jada Pinkett-Smith, foi vocalista da banda de nu metal Wicked Wisdom no início dos anos 2000, e Willow se lembra de ter presenciado muitos momentos de rejeição da plateia quando acompanhava a mãe em shows ao vivo. Ela relata que via Jada receber uma chuva de ofensas machistas e racistas ao subir no palco, além de ter objetos jogados em sua direção.

“Ela me mostrou o que é, de fato, ser uma mulher,” comenta. “Não existem palavras para descrever o que era ter que se apresentar na frente de pessoas que literalmente odiavam ela todas as noites. Ela fez isso com muita elegância e poder. E em cada um dos shows, ela convencia eles. Ao final do show, as pessoas que estavam usando gírias raciais com ela e jogando coisas nela saíam pensando ‘Na verdade, eles meio que detonaram’. Isso fazia tudo valer a pena.” Jada compartilha da visão otimista da filha e fala sobre a sensação de ocupar esse espaço: “Foi o que o metal fez por mim; ele me deu a liberdade absoluta de ser selvagem.”

A violência sofrida por Jada no início dos anos 2000 é sintomática principalmente do machismo e do racismo que atuam em peso nos Estados Unidos e nos países europeus, não só dentro do metal. No Brasil, conversamos com as cantoras Raíssa Ramos - backing vocal de Edu Falaschi e vocalista da banda Anacrônico (cover Pitty) -, e Hanna Paulino - cantora amapaense e vocalista da banda de hard rock Vennecy. Elas não relatam casos de violência no palco, mas apontam outras dificuldades que vivenciam como mulheres pretas no rock.

Raíssa Ramos, backing vocal de Edu Falaschi e vocalista da Banda Anacrônico

“Ser mulher já é bastante complicado, né? Precisamos estar sempre provando algo,” conta Raíssa. “Recebi várias perguntas do tipo ‘Se você não fosse bonita, acredita que o Edu [Falaschi] teria te chamado?’. E eu tenho absoluta certeza de que não perguntaram isso para o Caldeira, que cantou comigo os vocais na turnê. São coisas assim que me fazem perceber o quanto é mais difícil pra mulher alcançar um lugar de destaque. Sobre ser uma mulher preta, eu acredito que a maior dificuldade é ser uma das únicas, isso me deixa ainda um pouco triste. Mas acredito muito que nós estamos chegando.”

A falta de representatividade no rock e no metal também é algo apontado por Hanna, assim como a predominância de determinado padrão estético que acaba excluindo mulheres como ela e Raíssa. “Ainda percebo que a dificuldade está na questão de durante muito tempo mulheres pretas não terem tido a oportunidade de serem protagonistas na cena underground,” aponta. “Iniciei minha vida no metal em 2002, no auge de bandas com mulheres ‘padrão europeu’ estrelando bandas de gothic metal. Imagina surgir tocando o mesmo gênero e sendo totalmente fora do padrão estético estabelecido na época?”

“Demorei muito para ver mulheres como eu no rock/metal e isso me assustava, até mesmo por ser a única no Amapá a estar desenvolvendo tal atividade,” continua. “Depois de pesquisas, cheguei em nomes como Militia Vox e Cammie Beverly que se tornaram fonte de inspiração para mim. Além, claro, da suprema Tina Turner. A partir de tais influências comecei a pensar: ‘Posso ser como elas e ainda estimular outras minas pretas a ocuparem esse espaço que é tão nosso!’ Desde então não parei mais de ir em busca desse sonho e de vislumbrar isso para outras mulheres como eu.”

O padrão estético europeu também afetou Raíssa Ramos, que revela ter alisado os cabelos para tentar se sentir “um pouco dentro daquele mundo, esteticamente falando”. A virada veio, porém, quando ela decidiu assumir seus traços - coragem que chegou através de ver outras pessoas pretas representadas no metal nacional e internacional, como o brasileiro Marcelo Barbosa. Hoje, ela é “uma preta com um cabelo enorme que gosta de metal, e que canta com (pra mim) o maior vocalista de metal desse país.”

Hanna Paulino, vocalista da Vennecy

“Eu me sinto realizada cada vez que recebo uma mensagem de alguém dizendo que se sentiu representado ao me ver no palco com o Edu Falaschi. Posso dizer que estou realizando uma das missões que acredito ter nessa vida,” conta. “Eu espero ser uma boa referência pra quem vier depois de mim, espero que minha história, meu corre, inspire outras mulheres pretas ou não, mulheres do rock a aparecerem. E no que vocês precisarem de mim, estou aqui.”

Ela também oferece um conselho a outras mulheres pretas que sonham em ocupar seu espaço no rock e no metal: “Eu acredito que honrar os seus traços, a sua ancestralidade, faz de você um ser humano admirável, e as pessoas vão te admirar onde quer que você esteja. Não abaixem a cabeça se alguém falar alguma besteira. Batam de frente, ou mande se f*der, mas lembre sempre que para realizar seus objetivos você precisa estudar e correr atrás igual a todo mundo, porque você precisa chegar lá pelo seu esforço. E mesmo assim vão dizer que foi por sorte, e nessa hora você não discute, só olha pra trás. Você conhece sua história, e é isso o que importa.”

Como mulher preta do Amapá, Hanna Paulino também teve uma extensa caminhada com a música e o rock para chegar onde está hoje. Sua primeira experiência na música foi com uma banda cover de Lacuna Coil. Depois disso, aos 18 anos, ela integrou a primeira turma de canto lírico do Amapá e não parou mais. Fez parte de uma banda de heavy metal chamada Hidrah, que tocava clássicos do Angra, Shaman e Hangar, além de composições autorais, e eventualmente chegou na Vennecy, onde canta hoje. Ela conta que a banda costumava atuar na cena local com covers, mas passou a investir em composições autorais com a sua chegada.

Assim como na fala de Raíssa, Hanna ressalta a importância de correr atrás de seus objetivos por si própria, sem se abalar pela opinião alheia. “Não busco validação. Sempre batalhei, estudei e me dediquei arduamente para estar onde estou e ir muito mais longe ainda. O rock é preto e estou ocupando um espaço que é meu, por origem e direito,” afirma com firmeza. “Ser mulher preta no rock me possibilita dar vez e voz para outras manas que estão no mesmo circuito. Ter outras mulheres como eu acaba encorajando e empretecendo um movimento que - de origem - é nosso e acabou se tornando majoritariamente branco e masculino.”

Quando perguntada sobre o que pode ser feito para fortalecer ainda mais a presença de mulheres pretas no rock, ela responde com convicção:O ponto crucial para que mulheres pretas possam ter mais espaço na cena é a educação antirracista pautada também no combate ao machismo dentro do segmento. É preciso olhar ao redor e analisar: ‘Por que não vejo indivíduos diferentes do padrão no underground?’”

“A falta de pessoas negras, indígenas, amarelas, LGBTQIA+ - a ausência de pluralidade dentro no meio deveria incomodar a todos nós,” dispara. “Afinal de contas, o rock/metal produzido aqui é referência para o mundo todo justamente por sermos um país de cultura tão amplamente rica. Ao meu ver, não faz sentido seguirmos moldes europeus. Produtores, mídia, público e bandas devem buscar um olhar diverso e não somente o que sempre foi estabelecido pelo que vem de fora do Brasil.”

PARA OUVIR

Rock n’ roll e heavy metal ainda são gêneros musicais dominados por homens, mas as barreiras sociais do machismo nunca foram suficientes para impedir mulheres de tomar liderança e fazer a música que amam! 

Para divulgar e valorizar o poder feminino na música pesada, o Wikimetal preparou uma playlist com mais de duas horas de música, que inclui pioneiras como Big Mama Thornton e Janis Joplin, bandas lideradas por mulheres, como The Pretty Reckless e Spiritbox, sem esquecer grupos completamente femininos, de Thundermother a Crypta e Burning Witches. Confira:

WIKIMETAL RECOMENDA

Formada pela cantora brasileira Mell Peck e o guitarrista do The Cranberries, Noel Hogan, a dupla The Puro lançou recentemente seu primeiro EP, Law of Return (2022).

A colaboração entre os dois surgiu depois que Noel descobriu covers de Mell no YouTube, em 2019, por indicação de várias pessoas que recomendaram o trabalho da cantora, que hoje mora em Porto Alegre. “Nós nos conhecemos e nas conversas surgiu a ideia de compor juntos. Desde então, nós não paramos, e as ideias estão sempre vindo”, conta ela. Os dois trabalham a distância e com ajuda de tradutores, já que Mell não fala inglês fluente.

Para divulgar o EP, Noel estará no Brasil, e encontrará Mell em São Paulo para um show na Casa Rockambole neste dia 20/10, acompanhados da banda Leela. Será a estreia ao vivo do projeto, e os ingressos já estão disponíveis via Sympla.

SOBRE O WIKIMETAL

Fundado em 2011, o Wikimetal se tornou o maior portal de conteúdo próprio do segmento de rock e heavy metal do país. Atualizado diariamente com notícias, quizzes, enquetes, textos, entrevistas e cobertura de shows, o portal busca informar o público sobre o mundo musical além de apresentar uma visão sobre como a música se coloca em nossa sociedade.

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