"Overture" é uma palavra de vários sentidos. Sua origem é o francês, onde ela significa "abertura". No inglês, é um arcaísmo que também pode significar abertura, mas hoje em dia é mais utilizada em duas situações: quando você quer estabelecer uma relação com alguém num contexto mais formal ("make overtures", ouve-se muito na política) e, na música, é a apresentação instrumental que precede uma ópera ou um coral. Em português, este último sentido é chamado no Brasil pelo termo francês: ouverture.
Não que isso seja importante, por enquanto, para entender The Sandman Overture.
Essa nova "abertura" serve como comemoração dos 25 anos da estreia de Sandman, então um obscuro gibi de terror, criado por um obscuro jornalista inglês chamado Neil Gaiman nos obscuros anos 80. Gaiman só vestia e continua só vestindo trajes escuros, mas a HQ se transformou num fenômeno dos quadrinhos autorais nessas duas décadas e meia.
Então The Sandman Overture é uma forma de levantar a Vertigo, linha adulta da DC Comics, agora com vinte anos e sem sua fundadora, retornando ao que, de longe e muito longe, foi seu maior sucesso comercial e crítico. Sandman Overture também é uma aposta da DC, a filha que passou a receber mais atenção da mãe Warner Bros., para dar um up no caixa, pois é raro encontrar um produto relacionado a Sandman (ou a Gaiman) nas últimas décadas que tenha vendido pouco.
Não que isso seja essencial, por enquanto, para entender The Sandman Overture.
Gaiman já disse que The Sandman Overture não é um prelúdio - até para tomar distância de Antes de Watchmen, que felizmente já começa a sumir da memória coletiva - e que estaria mais para "Durante Sandman", segundo ele. Enigmático, o autor só revelou que a trama vai explicar por que Morpheus usava seu traje de guerra e estava tão combalido a ponto de deixar-se capturar por um bruxo na Sandman #1 de 25 anos atrás. Gaiman dá a entender em entrevistas que ainda não acabou de escrever a minissérie, e o faz lentamente em meio a 37 outros compromissos.
Não que isso seja importante, por enquanto, para entender The Sandman Overture.
Na primeira edição, após um prólogo num planeta distante, onde Morpheus é uma flor, vemos um encontro entre dois de seus irmãos, Morte e Destino. Morte diz que acaba de "buscar" Morpheus no planeta distante, "e quando um de nós morre... as coisas nunca acabam bem". Morpheus, porém, está vivo na cena seguinte, que se passa em 1915 no seu escritório em Londres. Ele veio dar cabo do Coríntio, o sonho que virou serial killer. Mas o senhor dos sonhos de repente é tragado por uma força desconhecida, que o leva primeiro ao Sonhar (onde usa suas vestes bélicas) e depois a um lugar desconhecido que é a maior surpresa da edição. Morpheus termina a revista dizendo, basicamente, "hein?". O leitor também.
Não que isso seja importante, por enquanto, para entender que diabos, afinal, é The Sandman Overture.
Há um tema que atravessa o primeiro número, relacionado à percepção de cada personagem. No planeta botânico distante, os requadros tomam formas orgânicas; na primeira cena com Coríntio, a moldura da página é um olho-dente do assassino (cada dente vira um quadro); a cena de Destino acontece dentro de seu próprio livro; o assistente do escritório londrino, George Portcullis, ganha páginas na forma de seu rosto, que é uma grade de castelo medieval (uma portcullis), e em preto e branco. Numa das páginas, três ou mais percepções se cruzam.
Não se sabe, por enquanto, se essa criação de camadas é importante para entender The Sandman Overture. Ainda é cedo para saber, ademais, se The Sandman Overture está sendo feita para ser "entendida". Com apenas uma edição - de seis -, o que dá para tirar da minissérie é que J.H. Williams III talvez seja o quadrinista mais virtuoso da atualidade.
Não é só a façanha de desenhar Morpheus como flor, nem de inventar molduras distintas e criativas para cada página dupla - que já é uma marca sua, para quem conhece outros de seus trabalhos -, nem de mostrar uma variedade técnica embasbacante (lápis e nanquim, aquarela, hachuras em bico de pena, provavelmente algumas inserções digitais), nem o detalhismo absurdo. O melhor de Williams é que ele faz tudo isso lembrando que não está criando quadros para uma exposição, mas quadros de uma história em quadrinhos, que têm que servir acima de tudo a uma narrativa.
O desenhista já demonstrava um pouco de virtuose nos primeiros quadrinhos, há quase 20 anos. Explodiu mesmo quando foi bem explorado por Alan Moore em Promethea, na virada do século (material vergonhosamente incompleto no Brasil). Trabalhar com bons autores - Grant Morrison, Warren Ellis, Greg Rucka - rendeu-lhe mais liberdade e seus trabalhos como roteirista e desenhista, em Batwoman, foram só mais experiência e exploração criativa para culminar em tudo que ele demonstra em Sandman Overture.
Ou seja: com apenas uma edição que serve de prólogo confuso, batendo de frente com toda a expectativa em torno da série e todo oba-oba em torno de Gaiman, a única certeza por enquanto de The Sandman Overture é que J.H. Williams III é muito foda.