Olhando em retrospectiva é possível dizer que as duas primeiras temporadas de Vis a Vis são obras-primas de texto, direção e, principalmente, edição. A série tinha uma capacidade impressionante de organizar seus muitos ganchos simultaneamente, brincando com expectativas de uma maneira irresistível. Não por acaso, entre seus quatro criadores (Daniel Écija, Álex Pina, Iván Escobar, Esther Martínez Lobato) há em comum um outro título tão bem-sucedido quanto: La Casa de Papel. As duas séries têm o mesmo tom nervoso, a mesma necessidade de surpreender, planejando enredos que explodem inesperadamente e colocam seus personagens em limites quase irreversíveis (embora sempre haja um jeito de reverter). A grande diferença é que Vis a Vis teve mais tempo para desenvolver o material humano que enchia as celas da prisão.
A comparação com Orange is the New Black é inevitável. As duas têm tons distintos – uma é comédia e a outra é um suspense – mas é impossível não notar que os criadores da produção espanhola foram estratégicos, repetindo detalhes que já tinham funcionado na veterana do Netflix. Isso inclui a própria premissa básica: a prisão de Macarena (Maggie Civantos), uma mulher de classe média que é enganada pelo amante e paga o preço por isso, indo para um lugar totalmente distante de sua realidade. É uma premissa exatamente igual a que leva Piper para o presídio de Orange, incluindo os mesmos desdobramentos, como a necessidade de "endurecer" para sobreviver, por exemplo. Macarena, porém, vai muito mais longe que Piper, algo que é imediatamente permitido por conta do tipo de narrativa que separa as duas séries.
Aos poucos, surgem outras semelhanças, como a figura materna de Sole (María Isabel Diaz) cuidando da viciada do grupo Tere (Marta Aledo) ou na dinâmica entre carcereiros e prisioneiras, que reúnem todos os típicos arremedos narrativos como o sexo, a tortura psicológica e a corrupção. Os criadores de são bastante descarados no que os inspira, mas exatamente porque estamos diante de um drama cheio de suspense, as duas séries vão se distanciando conforme a história avança. Por isso, ao final da segunda temporada, a sensação é de que vimos dois anos de uma obra muito bem calculada e inteligente... E aparentemente planejada para acabar naquele ponto. Aí é que começam as controvérsias da produção. Uma vez ressuscitada pela Fox, Vis a Vis começou a arranhar um trabalho que antes tinha sido absolutamente impecável.
Dança da Macarena
Em 2017, após as duas incríveis temporadas, a Antenna 3, que produzia a série, anunciou seu cancelamento e os criadores tentaram fechar todos os arcos possíveis no último episódio. E conseguiram. Ao final, a frase “O líquido é um estado da matéria que muda facilmente e sua forma depende do recipiente em que está inserido... O corpo é 70% água” concluía o enredo da série de maneira brilhante, fechando as ideias e valorizando ainda mais a jornada de Macarena, que havia sido transformada drasticamente pelo ambiente em que fora obrigada a viver. Era um final justo, poético e nervoso. Algum tempo depois, a Fox Espanha resolveu salvar a série. Contudo, o espaço de tempo entre o cancelamento e o retorno foi grande o suficiente para que o elenco fosse atrás de outros trabalhos, o que passou a comprometer muito a produção do novo ano.
A terceira temporada estreou em 2018 e chocou os fãs. Os cenários do presídio de Cruz Del Sur haviam sido desmontados depois do cancelamento, o que obrigou os roteiristas a mudarem a ambientação da nova temporada. Assim, algumas das personagens de Cruz Del Sur foram transferidas para Cruz Del Norte. O problema é que alguns dos atores já tinham se comprometido com outras produções e as ausências se demonstraram brutais. Civantos, a protagonista, só conseguiu assinar para os dois episódios iniciais (ela já estava em As Telefonistas), tempo suficiente para dar para a personagem alguma saída que justificasse seu desaparecimento. Porém, nem só de Macarena vivia a série e as ausências de Fabio (Roberto Enriquez), Sandoval (Ramiro Blas) e da diretora da antiga prisão provocaram uma série de buracos narrativos irreparáveis. O terceiro ano ainda foi bom, mas as estranhezas provocadas por essa descontinuidade não poderiam ser ignoradas.
Surpreendentemente, uma quarta (e última) temporada foi anunciada para o fim de 2018 e com a recontratação de Ramiro Blas a volta de Sandoval ao menos corrigia parte do erro. Civantos continuava ocupada com As Telefonistas e só assinou, novamente, para mais dois episódios. Reservaram a volta dela para os dois últimos e continuaram colocando toda a evolução da trama nas costas de Zulema (Najwa Nimri), que continuava sua saga desesperada para fugir, ferindo e sendo ferida continuamente, sustentando todas as bases dramatúrgicas da série, mas repetindo-se um pouco no processo. A personagem era realmente muito complexa e interessante, mas a dinâmica com Macarena foi interrompida num momento em que as duas caminhavam para uma convergência que seria, provavelmente, o marco da produção.
O último ano, apesar de tudo isso, se sustentou bem. Alba Flores revelou-se muito mais interessante como Saray do que como a Nairobi de La Casa de Papel (série em que já é apontada como um dos destaques). Sua personagem também era uma das bases carismáticas da série, junto com Cachinhos (Berta Vásquez). Novas personagens como Goya (Itziar Castro) renderam bons momentos, mas o grupo de prisioneiras “originais” era insuperável. Os roteiristas resolveram ser extremamente dramáticos com Sole, mas deliciosamente otimistas com Tere. Aos poucos, os destinos iam se resolvendo com certa dose de inesperado romantismo, enquanto nos preparavam para uma ótima notícia: devido ao sucesso da produção, um derivado focado em Macarena e Zulema fora da prisão foi encomendado. Ou seja, Vis a Vis: El Oasis pode colocar em prática o que não foi visto da relação entre elas.
Por fim, emocionalmente falando, o último ano estabeleceu vozes importantes em meio aos gritos por sobrevivência. Vis a Vis foi divertida e tensa, mas também relevante na exposição de um sistema carcerário que pressiona e violenta condenadas, esquecendo-se do que significa a palavra “reabilitação”. É curioso olhar para trás e perceber que, mesmo tendo cometido crimes hediondos, a maioria daquelas mulheres foram presas fugindo da opressão que as definia, seja sexual, religiosa ou qualquer outra. Por isso, mesmo tão afoita para ser chocante, a série escolheu a ternura e a positividade para encerrar seus dias. O mundo real pode não acreditar na mudança das Terês, mas o da fantasia sim.