Apesar de emanar um eterno ar jovial, John Cho já acumula 24 anos de carreira no cinema, tendo feito história para muito além da popularização de um infame termo sexista em American Pie (1999). Ativamente engajado desde o início dos anos 2000 na busca por papéis que contradigam os estereótipos hollywoodianos reservados à comunidade asiática, o ator injetou seu relaxado carisma em um maconheiro frustrado com o amor em Madrugada Muito Louca (2004), brigou para que a nova versão de Hikaru Sulu apresentada em Star Trek (2009) fosse abertamente gay, e se tornou o primeiro ator ásio-americano a protagonizar um filme de suspense em Hollywood com Buscando... (2018), trabalho pelo qual foi indicado ao Independent Spirit Award.
- Funimation anuncia elenco de dublagem brasileira de Cowboy Bebop
- John Cho sobre treino para Cowboy Bebop e cena sem camisa: "Estressante"
- Daniella Pineda responde ataques machistas por papel em Cowboy Bebop
Em uma indústria em que papéis concedidos a atores asiáticos se misturam aos de atores com ascendência polinésia para, ainda assim, somar apenas 6% das participações com fala em filmes, as conquistas de Cho o posicionam como um dos mais célebres expoentes hollywoodianos de representatividade. Mas quando se pensa na proficiência em comédia, drama e ação demonstradas por ele ao longo de mais de duas décadas de carreira, ainda parece pouco. É por isso que vê-lo à frente de uma produção da importância cultural de Cowboy Bebop é uma conquista que chega na hora certa para mudar essa história.
Spike Spiegel, o carismático, teimoso, melancólico e irresistível protagonista do clássico anime, é um papel que abarca todos os talentos que Cho nunca pôde exibir em um só trabalho. Foi essa amplitude que o atraiu à série de TV em live-action de Cowboy Bebop, produzida pela Netflix, mesmo sem conhecer o produto original. "Quando eu assisti ao anime, pensei: 'Eu queria ter inventado isso. É tremendo. É realmente interessante e inteligente e engraçado, e é todas as coisas que eu queria fazer'", afirmou, em entrevista concedida ao Vulture. "Todos os personagens vêm de lugares de perda, e há muitos mecanismos de defesa trabalhando para lidar com isso, o que molda toda a série".
Entra John Cho, sai whitewashing
Para o público norte-americano, Cowboy Bebop guarda importância similar à que têm Dragon Ball e Cavaleiros do Zodíaco para os brasileiros, marcando para muitos o início de seu interesse na cultura pop japonesa. Incorporando elementos de faroeste, film noir, space opera e outros gêneros consagrados pelo cinema dos Estados Unidos, o anime chegou à grade do Cartoon Network em setembro de 2001, no bloco Adult Swim, permanecendo nele por quatro anos seguidos e sendo reprisado anualmente ao menos uma vez, desde 2007. Ao lado do sucesso do Studio Ghibli com A Viagem de Chihiro (também de 2001), Bebop ajudou a estender ao mainstream o apelo internacional da cultura de massa japonesa.
Como tudo que bomba nos Estados Unidos, é claro que não demorou para que uma adaptação em live-action fosse ventilada: em 2009, a Variety confirmou que a 20th Century Fox trabalhava na produção de um filme de Cowboy Bebop, em parceria com a Sunrise Animation, produtora do anime original, e com os diretores Kenji Uchida e Shinichirō Watanabe, além do roteirista Keiko Nobumoto, trabalhando como produtores associados. Masahiko Minami, produtor do clássico, seria consultor criativo, enquanto Peter Craig atuaria como roteirista. Para o papel de Spike, o projeto iria recorrer a ninguém menos que o protagonista de uma pequena saga chamada Matrix, Keanu Reeves. Foi só em 2014 que o projeto foi definitvamente abandonado, felizmente.
Como a concepção norte-americana de raça se mistura também à de nacionalidade, Reeves não é considerado exatamente branco pela indústria de Hollywood, que à época fatorava sua origem libanesa, nacionalidade canadense, ascendência havaiana e propensão a papéis com artes marciais envolvidas como justificativa para relacioná-lo a qualquer papel de origem ou temática asiática. Ainda assim, escalá-lo como um cínico fumante compulsivo não seria exatamente confrontar anos e anos de uma visão racista, emasculante e subserviente imposta a personagens ásio-americanos; seria apenas refazer Constantine (2005). Além disso, natural de uma colônia humana em Marte, Spike Spiegel é descrito especificamente como asiático em algumas passagens da animação original; o que Reeves não é.
É por isso que a escalação de Cho, um norte-americano de ascendência sul-coreana, é uma conquista da diversidade: porque manda um recado global que um herói já amado por diferentes culturas pode sim ter olhos puxados; especialmente um herói de anime, ainda que repensado pelo prisma das produções norte-americanas. Como o próprio ator reflete na entrevista, "não sei se os criadores japoneses se importavam com raça, [...] só que nós vivemos na Terra e estamos fazendo um produto para as pessoas em 2021, então se eu sou um espectador e vejo um homem branco como Spike Spiegel, talvez eu diga: 'ah, lá vão eles de novo fazendo a mesma coisa de sempre'".
Estrelando John Cho
Ver John Cho à frente de uma produção com ares de blockbuster, podendo fazer rir, chorar e chutando bundas na mesma proporção, é algo que fãs do ator vêm pedindo desde que ele foi a público contra o whitewashing, em 2015. Um ano depois, o artista visual William Yu lançou a campanha #StarringJohnCho, que imaginava em uma série de pôsteres, editados no Photoshop, como ficariam algumas das maiores franquias do mundo se escalassem o astro como seu protagonista.
Mais do que um protesto divertido (que viu o belo rosto de Cho estampando pôsteres de Vingadores, 007, Missão: Impossível, entre outras superproduções), a campanha defende que o ator também detém o poder financeiro para despontar como o grande leading man asiático em Hollywood, citando os rendimentos superiores a US$100 milhões dos três filmes de Madrugada Muito Louca (contra um orçamento conjunto de US$40 milhões), bem como o sucesso de público e crítica em Star Trek.
Agora, na Netflix, o ator de 49 anos tem sua melhor chance para provar isso, enfim abrindo as portas de uma franquia para chamar de sua e partindo da base deixada por um dos animes mais cultuados de todos os tempos para entregar algo novo, que faça jus não só ao legado do original, como também a uma carreira brilhante, mas que ainda tem muito espaço para crescer. "O tanto de pensamento e preocupação e esforço e o número de dias que dediquei a pensar em Spike, estão agora se igualando com o meu medo quanto à reação do público", confessou ele. "Mas em algum ponto, a oportunidade é sim ou não. E eu queria fazer, então eu não ia me impedir de fazer", completou. Que bom, pois Spike Spiegel tem tudo para ser o mais importante papel já aceito por John Cho.