Se o histórico relativamente recente do terror francês servir de referência, A Nuvem pode se apresentar como um novo Mártires (2008) ou um novo A Invasora (2007), filmes com uma predileção pela paranoia social e pelo sadismo para dar conta do horror de ser mulher ou mãe num mundo masculino cada vez mais brutalizado. Essa expectativa joga a favor do diretor Just Philippot, que constrói A Nuvem em cima de um suspense crescentemente sufocante, enquanto aguardamos pelo pior.
De início, a trilha sonora é econômica, naturalista, para não antecipar o terror. E os barulhos dos gafanhotos também são. A protagonista, Virginie (Suliane Brahim), cria sozinha dois filhos adolescentes no interior da França, apostando que sua estufa de gafanhotos para consumo humano, ou como ração para patos, pode sustentar a família depois da morte do marido. É quando o negócio prospera que as coisas começam a dar errado.
O filme não detalha as circunstâncias da morte do marido, apenas diz que ele se dedicava mais à criação de cabras. Ou seja, A Nuvem parte de uma exposição acima de tudo elusiva: quando vivo o homem da casa era um pastor, como num arranjo bíblico, e bíblica também é a expectativa (implícita no título do filme) por uma chaga de gafanhotos que dizimará a terra. Philippot se escora nessa premissa muito sugestiva para ditar um ritmo paciente ao filme, que só deixa o naturalismo de lado quando o volume dos gafanhotos realmente ensurdece e enlouquece a gente, no terço final.
Como exemplar de uma tradição de horror corporal, A Nuvem até que é um filme bem acanhado. Está longe de ser A Mosca (1986), por exemplo, na sua sugestão de uma simbiose não-natural que revelará o animalesco nos homens. Quando a câmera de Philippot faz o plano-detalhe bem aproximado dos gafanhotos comendo as cabeças uns dos outros, ele está buscando no mundo natural um efeito de body horror, mas seu filme nunca parece capaz de dar um passo seguinte e apropriar-se mesmo desse horror para transformá-lo. É como se ele quisesse nos convencer de que ali o canibalismo (que é natural em muitas espécies) já é terrível o suficiente para justificar A Nuvem como cautionary tale e como manifestação do grotesco.
Ou seja, Philippot meio que se isenta de levar adiante uma proposta de radicalização com a qual ele fica flertando ao longo do filme, e em cima da qual sua proposta de suspense lento se construíra desde a premissa. Na falta de um body horror mais contundente, o que temos então em A Nuvem seria um… startup horror? Porque existe sim um terror latente no filme e que dialoga com nosso mundo que é essa situação típica do capitalismo tardio de exigir que as pessoas deem 120% em nome da prosperidade - e sem esquecer da sustentatiblidade - como patrões de si mesmos.
Talvez essa posição seja a mais “francesa” de A Nuvem, porque afinal a tradição do país sempre foi a do protecionismo agrícola e do incentivo público, e é natural que mesmo um diretor estreante como Just Philippot já se coloque como um crítico da voracidade do discurso startupeiro. Cenas como a negociação do pagamento ou mesmo diálogos aparentemente inocentes dos adolescentes (quando o filho diz “não quero sair daqui agora” para proteger a mãe, na verdade ele está internalizando o ditado que diz que o olho do dono é que engorda o gado) sempre pontuam para o espectador que o mediador da vida - talvez hoje mais do que em tempos bíblicos - é o dinheiro.
O que A Nuvem faz no fim é pegar a metáfora de que “é preciso cortar na pele” para vencer na vida e transformá-la numa coisa literal. É menos um body horror ou um ecothriller no fim, e mais uma lição bem literal mesmo de que morar no local de trabalho em tempos de LinkedIn e pandemia talvez não seja a receita mais saudável.
A Nuvem
La Nuée
Ano: 2020
País: França
Classificação: 12 anos
Duração: 101 min
Direção: Just Philippot
Roteiro: Jérôme Genevray, Franck Victor
Elenco: Suliane Brahim
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