Quando Elisa Lam morreu, em janeiro de 2013, sua rede social favorita era o Tumblr. Sua página (chamada Nouvelle-Nouveau) era uma mistura de imagens artísticas e textos que pareciam desconexos; e estão no ar até hoje para quem quiser vê-los. Entre os últimos posts, imagens lúdicas que ela capturou da própria janela do hotel. É certo que em 2013 o Instagram ou o Facebook não eram tão dominantes quanto nos dias de hoje. Mas, a internet era uma realidade opressiva, com o YouTube disparando informações na velocidade da luz, o que foi, enfim, preponderante para que o mistério da morte da jovem se tornasse dos mais especulados do mundo - e viesse a ser reavivado oito anos depois, na série documental Cena do Crime - Mistério e Morte no Hotel Cecil, produzida pela Netflix.
Elisa Lam fez check in no Hotel Cecil, no centro de Los Angeles, em 28 de janeiro. No dia 31, quando não apareceu para o check out, os funcionários do hotel descobriram que ela tinha desaparecido e deixado todos os pertences. As buscas começaram e nas câmeras de segurança a polícia achou a peça que mudou o rumo dos acontecimentos: um vídeo de quatro minutos contendo imagens de um dos elevadores do prédio foi liberado para a imprensa e, nele, Elisa demonstrava um comportamento bizarro, sombrio, que imediatamente ligou a chavinha da conspiração e fez o desaparecimento da jovem se tornar uma lenda da cultura pop.
Dois anos depois, em 2015, o FX estreou a quinta temporada de American Horror Story, que se intitulava Hotel e apresentava ao público a rotina do Hotel Cortez, no centro de Los Angeles, com uma fachada e um nome bastante parecidos com o do Hotel Cecil. Era proposital. Um ano antes, Ryan Murphy deu de cara com o vídeo de Elisa no elevador e teve a ideia de desenvolver uma trama sobre um hotel cercado de mistérios e horrores. Era basicamente a história do Cecil, que abrigou viciados, traficantes e assassinos em série. A lista de mortes do hotel era impressionante e, quando Elisa foi encontrada boiando na caixa d'água 19 dias depois de sua morte, a má fama do prédio chegou a seu apogeu. Hóspedes beberam e tomaram banho usando aquela água pútrida por quase 20 dias.
A trama da temporada Hotel de American Horror Story era toda construída em torno das teorias sobrenaturais que rondavam o Cecil. A cidade de Los Angeles tem uma trajetória assombrosa, com todo tipo de violência e massacre, cercada de crimes e assassinos notórios, e o Hotel Cecil fica no meio desse núcleo de péssima energia. Antigo, barato, com um endereço maldito, ele sempre foi fadado à tragédia. O vídeo de Elisa, as descobertas sobre onde estava o corpo e todo o passado hediondo do hotel produziram um hit especulativo. A série documental da Netflix parte desse exato princípio: para que as revelações sobre o destino de Elisa sejam feitas, primeiro é preciso entender tudo que a morte dela produziu.
Late Check-Out
O trabalho de Joe Berlinger com documentários é notório há muito tempo. Notória também é sua fascinação pelas transgressões humanas, o que lhe rendeu um currículo tomado de registros de crimes famosos. Indicado ao Oscar pela terceira parte da trilogia Paradise Lost (1996-2011), Berlinger se especializou em contar histórias reais com o máximo possível de recursos dramatúrgicos. Com o sucesso das primeiras séries documentais, essa sensação de trama fictícia pôde ser ainda mais explorada, fazendo com que o gênero documental fosse impregnado de características seriadas.
Cena do Crime foi construído quase como uma pequena minissérie de horror, uma temporada clean de American Horror Story, com personagens sendo apresentados, um mistério para ser resolvido, ganchos e uma sequência de desvios narrativos para deixar qualquer espectador sem fôlego. Essa é a maior e mais questionável característica do documentário. Até que o público entenda qual o objetivo de Berlinger – e é um objetivo muito forte – o caso de Elisa vai ser explorado de todos os modos, do mais provável ao mais absurdo. De fato, o compromisso de Berlinger com o “valor” daquelas teorias chega ao ponto de nos deixar o tempo todo com uma dúvida: será que ele não acredita em algumas delas? São três episódios inteiros de uma costura minuciosa de todas as coincidências bizarras que rondam o caso, até que, no episódio final, a “brincadeira” de acreditar dá lugar ao ponto final: Joe Berlinger tem um ângulo e, nos 30 minutos finais, ele vai prová-lo.
Os “personagens” do documentário foram escolhidos para maximizar essa minúcia em torno da histeria que a morte de Elisa provocou. A gerente do Cecil por dez anos admite a violência que rondava o hotel, os moradores de Skid Row (área em torno do hotel que equivale à Cracolândia, em São Paulo) dão testemunho da permissividade do prédio, os internautas e YouTubers atestam a sincronicidade supostamente sobrenatural dos eventos, e a voz das autoridades é estrategicamente posicionada nos primeiros episódios para soar frágil, translúcida, insegura do que teria realmente acontecido com a jovem estudante.
Conforme vamos nos aproximando do desfecho e percebemos, surpresos, que o diretor vai sim nos apresentar respostas, o documentário contorna o delírio e acerta um golpe naqueles que selecionaram a produção para assistir em busca da mais saborosa confirmação conspiratória. Um a um, os mistérios que envolvem o caso vão sendo explicados e Berlinger vai atrás sempre da resposta mais simples. O elevador que não fechava as portas, os gestos desconexos, como ela entrou no tanque, porque estava nua... As “revelações” são tão diretas que desarmam qualquer expectativa. Tudo estava ali o tempo todo, mas o coletivo histérico e inconsequente da internet não queria ver. Sem que o espectador perceba, a narrativa o leva até os momentos mais difíceis da curta vida de Elisa, vítima de uma doença mental e de fóruns de discussão por todo o planeta.
Ao final, mais que medo, Cena do Crime se encerra com tristeza. Elisa, que em seu Tumblr buscava tanto um elo de compreensão, um acolhimento por parte do resto do mundo, não foi compreendida. Talvez agora, com o documentário de Berlinger, seja possível fazer aquilo que ninguém considerou fazer por ela: simplesmente deixá-la em paz.
Criado por: Joe Berlinger
Duração: 1 temporada