Como o título já diz, Emicida: AmarElo - É Tudo pra Ontem tem pressa de fazer acontecer. A gravação do show que o rapper fez em novembro de 2019 no Theatro Municipal de São Paulo se mistura, no filme da Netflix, com historiografia da negritude brasileira, reparação histórica, análise sociológica, autobiografia e, eventualmente, no meio disso tudo, um registro de making-of. É expressão de uma pretensão artística da mesma forma que é expressão de uma urgência no discurso.
Não demora para ficar claro que, no meio desse combo ambicioso, onde Emicida é personagem e narrador, ele se coloca como a figura capaz de personificar e organizar essa variedade de registros, porque antes de mais nada o rapper, com sua fala tranquila, faz aqui a voz da razão. Entrar no filme é assumir que Emicida tem essa autoridade: o menino mirrado que surge em fotos de família reaparece encorpado numa elipse de tempo, no palco, assimilando a MPB de Belchior e já abençoando novos artistas como Drik Barbosa e Majur. Essas elipses são constantes no filme porque são elas que consolidam na imagem, por associação, a autoridade do artista.
É Tudo pra Ontem então se mostra, rapidamente, muito mais um filme de construção de mito do que necessariamente um documentário de bastidores ou de processo criativo. Tomando Emicida como início e fim, essa construção se faz na montagem: nenhum momento é mais sintomático do que colocar em cena Mateus Aleluia (símbolo da ancestralidade africana desde os tempos de Os Tincoãs) e em seguida trazer o pastor batista Henrique Vieira, e promover nessa associação uma “paz” entre o candomblé e o catolicismo. O aspecto religioso é central ao filme - desde a concepção de cenário do show, com a projeção de vitrais que transforma o Municipal numa nave de igreja - e se não é transformado por completo em uma figura messiânica Emicida pelo menos é pintado como o agregador dos povos.
Criar e promover o mito de si mesmo não deixa de ser um mecanismo de defesa no rap, ainda que a persona de Emicida - que aos poucos vai ocupando no cenário nacional um papel de embaixador com trânsito entre gêneros que Criolo foi inábil em manter - já pareça ter transcendido as batalhas de rima por credibilidade, vaidade, território. De qualquer forma, o filme sabe converter essa criação de mito em um propósito maior, com senso de justiça e oportunidade, quando reivindica espaços de validação cultural injustamente interditados aos negros, como o Municipal.
A própria vitrine da Netflix e os documentários de estética publicitária, “profissionais”, não deixam de ser dois outros espaços que Emicida e a cultura negra reivindicam para si com É Tudo pra Ontem. Um dos elementos mais interessantes e fortes do filme é justamente a normalização da fala periférica como organizadora do discurso. O narrador é, em si, uma autoridade de certa forma, porque assumimos seu texto em off como verdade. E no fim das contas o Emicida narrador, ao subverter a norma culta com seus coloquialismos, está com isso se apropriando do lugar da fala hegemônica, “oficial”, e transformando-a por dentro.
Não é uma conquista trivial. Aceitamos como verdade seu olhar pedagógico sobre a história brasileira porque a Emicida foi dado esse espaço privilegiado - é a própria premissa do filme, e há nisso uma força invisível, que em última instância é coletiva. Não por acaso, as cenas animadas com resgates históricos, de contextualização, são os momentos em que Emicida é só voz, é o cantor na essência do seu ofício. E Emicida - onipresente no filme, dentro e fora de cena - tira o melhor da situação, para si e para os seus.
Ano: 2020
País: Brasil
Duração: 89 min min
Direção: Fred Ouro Preto
Elenco: Emicida