Em 1998, Kevin Smith (O Balconista) assinou o roteiro de Diabo da Guarda, sua primeira e mais memorável HQ publicada pela Marvel. A história não só mergulhava nos elementos fundamentais de ambas as personas civil e heróica do Demolidor, como abraçava de forma épica a interconectividade das histórias da editora para reestruturar o status quo do personagem. Flertando com o sobrenatural, ela lançava Matt Murdock em uma espiral de questionamentos acerca de sua origem, suas escolhas de vida e sua fé. Maduro e sombrio, o texto evocava a era seminal de Frank Miller ao mesmo tempo que permeava a trama com uma coragem cega que só podia vir de uma mente criativa inconsequente como a de Smith; capaz de convocar Homem-Aranha, Viúva Negra, Doutor Estranho e Mercenário, além de matar personagens importantes, a serviço do resgate de um nome considerado de segundo escalão.
Relembrar disso tudo para falar sobre Mestres do Universo: Salvando Etérnia, a mais nova série animada inspirada pela linha de brinquedos da Mattel, é importante por um motivo: informa basicamente toda a abordagem que Smith, showrunner da produção da Netflix, adotou para modernizar esse universo clássico das animações dos anos 1980.
Com a nova Mestres do Universo, o cineasta lança uma reavaliação épica, madura e respeitosa sobre a história original, contada em He-Man e os Mestres do Universo (1983), e consegue não só resgatá-la e fazê-la relevante para o público atual, como também permite que transcenda o estigma de entretenimento de segunda classe que a acompanha desde suas origens. Mais do que isso, os cinco episódios que compõem a Parte 1 da série animada, que chegam ao streaming em 23 de julho, abrem espaço para e invocam interesse em novas histórias vindas de um poço que há muito parecia ter secado. É um trabalho e tanto quando discussões interessantes sobre existencialismo e moral dão as caras no que poderia ser só um longo comercial de brinquedos.
CAI O CASTELO DE GRAYSKULL
Em Mestres do Universo: Salvando Etérnia, uma devastadora batalha entre He-Man e seu antigo rival Esqueleto faz com que a magia de todo o planeta-título comece a se extinguir. Assim, as forças bondosas de Grayskull e maléficas da Montanha da Serpente têm de se unir para encontrar as duas metades da Espada do Poder, perdidas durante o embate. Com He-Man e Esqueleto fora de combate, resta a Teela comandar um grupo com Andra, Maligna, Gorpo e Roboto em uma jornada do inferno ao céu (literalmente) para resgatá-las, uni-las e restaurar a magia às sofridas terras da região. A jornada, entretanto, não é fácil, e promete custar vidas de personagens queridos que antes nunca pareceram tão ameaçados.
A partir dessa premissa extrema (que, acredite, vai chocar bastante logo em seus primeiros minutos), Smith e os roteiristas Eric Carrasco, Tim Sheridan, Diya Mishra e Marc Bernardin misturam a estrutura de jornada épica de O Senhor dos Anéis à expansão de universos e mitologia desenvolvida em Star Wars; junção que confere a Salvando Etérnia um senso de urgência nunca antes visto na descompromissada série dos anos 1980, produzida pela Filmation. Partindo de questões não resolvidas por suas duas temporadas (a prometida batalha final entre He-Man e Esqueleto, a revelação de que Príncipe Adam e He-Man são a mesma pessoa e a descoberta de Teela sobre suas verdadeiras origens), a equipe abre espaço na nova história para o desenvolvimento de dramas pessoais de personagens de apoio antes obscurecidos, além de incluir novos conflitos temáticos como o embate ideológico entre adeptos da tecnologia e da magia, a natureza infinita do trabalho de um herói e a origem do mal.
Assim, faz sentido que o nome de He-Man não mais figure no título da série, que prestigia mesmo o coletivo que compõe os Mestres do Universo. Com pulso firme e foco que só viriam de alguém com real admiração e paixão por esse universo fictício, Smith desenvolve arcos narrativos variados e emocionantes que aprofundam personagens antes queridos mais por seus visuais que por suas personalidades. Duncan, o Mentor, convida o espectador a uma reflexão bonita sobre o papel da paternidade e a devoção a um ideal. Gorpo brilha em um momento dedicado a confrontar as expectativas que nos cercam e por vezes sufocam, quando frustradas. Maligna, sempre tão presa à figura de Esqueleto, enfim tem seu momento de protagonismo ao comentar e confrontar justamente essa devoção não correspondida ao vilão. Roboto, quem diria, protagoniza uma cena lindíssima cujos diálogos serão ótima introdução para que a garotada chegue a Blade Runner, eventualmente. E Teela, é claro, finalmente deixa de ser apenas o braço direito de He-Man e Adam para se mostrar ainda mais complexa e heróica que o grande protagonista.
OS ÚLTIMOS JEDI DE KEVIN SMITH
A menção a Star Wars pede também uma comparação que convida a polêmica: o trabalho de Smith em Mestres do Universo: Salvando Etérnia traz ecos do que fez Rian Johnson em Star Wars: Os Últimos Jedi. Com coragem, ambos optaram por balançar as estruturas de uma franquia muito amada para sustentar conflitos momentâneos que acreditavam ser essenciais para enriquecer os personagens. Se Luke Skywalker aparecia negando a Ordem Jedi na metade do filme, era só para que seu retorno aos caminhos da Força fosse ainda mais impactante no final. Se He-Man sai de cena para o conflito inicial da série, é só para que o retorno do herói, seu idealismo e sua força sejam ainda mais épicos no desfecho. Mas o trabalho de Smith, por mais que vá também angariar os seus haters aqui e ali, diverge do que foi feito por Johnson em um ponto: o showrunner é mais cuidadoso ao garimpar suas referências do passado e mantê-las ao alcance do espectador.
Mestres do Universo cria situações que destroem completamente as hierarquias narrativas que a série dos anos 1980 (bastante engessada e repetitiva para os padrões atuais) mantinha, mas nunca coloca um personagem falando ou defendendo algo que ele não faria há 40 anos. A necessidade de espaço dedicado para Teela era uma dívida com os fãs da animação clássica, que sempre prometeu a resolução do mistério ligado à origem da personagem e nunca a entregou. A divisão da Espada do Poder em duas, uma metade da Luz e outra das Sombras, remete diretamente a um dos primeiros brinquedos da linha da Mattel. Andra, a destemida e carismática nova protagonista, alvo de denúncias estúpidas de “lacração” (e não, ela não é a nova namorada de Teela), já existia no cânone da saga; foi adaptada dos quadrinhos publicados pela Marvel Comics em 1980. E a ausência de He-Man é fundamental para que o personagem, um arquétipo idealista comparável ao Superman, seja submetido a um conflito digno do “homem mais poderoso do universo”.
Esse respeito ao passado e essa noção afiada do que melhor servirá à história também incluem a galhofa e o senso de humor, e Mestres do Universo: Salvando Etérnia consegue um equilíbrio divertido também nesse quesito. Não espere pela volta da música-tema da animação original, nem as lições de moral conduzidas por He-Man após o final dos episódios, mas é animador para um fã das antigas perceber que Esqueleto continua sendo um vilão temível, mas fanfarrão; Gorpo segue sendo o trapalhão que sempre foi; Pacato continua sendo a versão felina do medroso Scooby-Doo (mas infelizmente, desta vez, sem a voz de Orlando Drummond na dublagem brasileira). Em meio à maturidade que permeia a nova trama, esses momentos de leveza a mantém acessível não só ao nostálgico público mais velho, mas a uma nova geração de fãs.
AÇÃO E ANIMAÇÃO CAPRICHADAS
O interesse em cativar um novo público fica claro no visual luxuoso de Salvando Etérnia. Embora o design de personagens preste homenagem às cores e extravagâncias do que era visto em He-Man e os Mestres do Universo, a animação assinada pelo Powerhouse Animation Studios parece cara, não economiza em movimentação, profundidade e até lança mão de elementos em 3D para aumentar o escopo do que é visto, predominantemente, em 2D. O resultado são cenas de ação com peso e intensidade só vistos nas temporadas mais recentes de Castlevania (também animada pelo estúdio). Um soco de He-Man, ou uma incursão ofensiva do sempre cheio de recursos Mentor nunca foram tão poderosos ou divertidos de assistir. Locações conhecidas de Etérnia ganham nova vida, enquanto novos ambientes são apresentados com riqueza de detalhes. E a recriação de cenas clássicas, em especial a transformação de Adam ao proferir as palavras “pelos poderes de Grayskull”, são arrepiantes.
Para completar o desbunde técnico, a trilha sonora do vencedor do Emmy Bear McCreary é digna de épicos da tela grande, conseguindo servir ambas as facetas que compõem o mundo de Mestres do Universo igualmente: a fantasia de capa e espada e a tecnologia mezzo cyber, mezzo steampunk. Com Mark Hamill (mais um toque de Star Wars, olha aí) totalmente à vontade fazendo de Esqueleto uma carismática ameaça, e Chris Wood equilibrando a inocência na voz de Adam com o gravitas do poderoso He-Man, o elenco de vozes originais é outro destaque: Lena Headey, que seria uma ótima Maligna em live-action, prova-se um acerto também no trabalho de voz; Sarah Michelle Gellar traz uma rara vulnerabilidade, mas também muita força para Teela; Liam Cunningham é imponente e amável como a voz de Duncan; e o veterano do horror Tony Todd espelha de forma fantasmagórica a voz de Hamill como o espectro Scare Glow, que partilha uma ligação sinistra com o outro "cara-de-caveira". Isso, só para citar alguns nomes. Todo esse trabalho somado resulta em um deleite e tanto para os ouvidos dos fãs.
Em cinco episódios, Mestres do Universo: Salvando Etérnia fez com He-Man e seus amigos o que Kevin Smith fez com o Demolidor, nos quadrinhos dos anos 1990: elevou uma história antes escanteada por projetos mal conduzidos e abriu as portas para ressignificar sua jornada (perdão pelo chavão) em uma narrativa moderna, emocionante e impactante. É evidente que a profundidade da série encontra um limite em seu próprio propósito (afinal, a gente sabe que vem aí uma linha de brinquedos para lucrar com ela), mas a não ser que uma hecatombe passe por cima de tudo isso nos capítulos da segunda parte, que encerrará essa primeira temporada, dá para afirmar sem pestanejar que a nova animação tem a força.
Criado por: Kevin Smith
Duração: 1 temporada