Lançada originalmente em 2013, a HQ O Legado de Júpiter, de Mark Millar e Frank Quitely, retomava uma pertinente discussão geracional iniciada em 1996 por Mark Waid e Alex Ross em Reino do Amanhã. Assim como sua predecessora, a revista do Millarworld questionava a mudança das histórias de super-heróis, antes baseadas em inspiração e esperança e agora ditadas por tendências apelativas de quadros hiperviolentos e sexualizados. Adotando justamente a linguagem que criticava para provar sua tese, Millar entregou com o título um contraponto ao movimento que ajudou a criar com Kick-Ass e Os Supremos, provando que os grandes heróis são indissociáveis do simbolismo iluminado que os cercam. Infelizmente, a versão da Netflix de O Legado de Júpiter apenas ensaia recuperar esse debate, com resultados decepcionantes.
Por mais que traga elementos-chave o bastante para ser classificada como uma adaptação, a série funciona, na verdade, mais como uma introdução a Legado de Júpiter e seu prelúdio, O Círculo de Júpiter (que contou com artes de Wilfredo Torres e Davide Gianfelice). Sendo assim, o espectador é apresentado a pequenos indícios de atrito entre os membros originais da União da Justiça, super-heróis que adquiriram seus poderes ao explorar uma misteriosa ilha, e seus descendentes, que nasceram poderosos e cresceram exibindo seus dons para a humanidade. Enquanto os livros de Millar expunham de cara as maneiras opostas como essas diferentes gerações lutavam contra forças que ameaçavam a humanidade, a produção da Netflix sacrifica toda chance de dinamismo ao citar essas diferenças em linhas de diálogo rasas e passageiras. A falta de profundidade e excesso de antecipação por um conflito que nunca acontece torna frustrante a experiência de assistir o primeiro ano de O Legado de Júpiter.
As poucas cenas minimamente empolgantes da temporada também acabam se tornando maçantes, não só pelo exagero de câmeras lentas, mas pelos efeitos visuais decepcionantes, que parecem pertencer a telefilmes dos anos 1990. Não ajuda também o fato de que toda dose de adrenalina proporcionada pela série é seguida quase imediatamente de um sermão monótono proferido pelo Utópico (Josh Duhamel), o Superman do mundo de O Legado de Júpiter. Repetitiva, a fórmula dos episódios cria uma barriga impossível de ser ignorada na primeira temporada e faz com que a trama praticamente não saia do lugar mesmo depois de quase oito horas.
Embora não tenha um texto bom com o qual trabalhar, o elenco se esforça o bastante para entregar o entretenimento prometido pelos trailers. Enquanto é inegável que Duhamel, Leslie Bibb e Ben Daniels transmitem a grandiosidade característica dos heróis da Era de Ouro dos quadrinhos, Elena Kampouris, Ian Quinlan, Anna Akana e Tenika Davis também entregam performances convincentes, apesar do roteiro embolado. Dentro do elenco, talvez Andrew Horton seja o único realmente prejudicado pelo script, já que ele tem pouco mais a fazer do que olhar para o horizonte com um semblante triste.
O uso moderado do gore também é elogiável. Diferentemente da chuva de sangue presente em The Boys ou Kick-Ass, a violência de O Legado de Júpiter faz parte da narrativa e serve de agente catalisador para ações dos personagens e não como um simples escape para qualquer sentimento sanguinolento que o espectador tenha guardado.
Por mais que se proponha a recriar a discussão dos gibis, a primeira temporada de O Legado de Júpiter nunca traz a discussão à tona por tempo o bastante para que ela tome corpo. No final, os primeiros oito episódios da série servem mais como uma introdução vazia aos trabalhos de Millar do que como uma história própria. Com potencial para ser a grande propriedade de heróis da Netflix, a produção entrega apenas tédio para novos espectadores e decepção para fãs das HQs originais.
Duração: 1 temporada