Quando a série Dexter estreou, seus criadores ofereceram ao mundo uma perspectiva totalmente inusitada do que poderia existir dentro da mente de um serial killer, principalmente um que fosse “domesticado”. Ouvíamos os pensamentos de Dexter e conseguíamos alcançar não só as engrenagens de seu anseio de matar, mas também tudo que envolvia sua rotina social e familiar. O resultado foi a empatia, a torcida pelo personagem, que se tornou tão intensa que subverteu a premissa original. Os roteiristas cederam e aniquilaram o personagem na sua reta final. A empatia pode ser uma coisa perigosa.
A chegada de You à Netflix reacendeu o interesse pela questão. A série passou totalmente despercebida no Lifetime, mas se tornou um sucesso impressionante na plataforma. Esse êxito é responsabilidade, em grande parte, do talento de Sera Gamble e Greg Berlanti em transcreverem para a televisão o livro de Caroline Kepnes, livro esse que faz exatamente o que Dexter fez: dar ao psicopata, ao abusador, ao monstro, o direito de ter uma voz. Dar a ele o poder de ter sua mente esmiuçada. Não demorou muito para que uma onda chocante de apoio ao personagem tomasse conta das redes sociais.
Joe (Penn Badgley) parecia para muitos dos espectadores um homem irresistível. Bonito, frágil, inteligente, dedicado... Tinha sempre uma citação literária, um ato romântico e ainda tinha um instinto paternalista com relação ao vizinho que sofria de abusos (como ele sofreu). O problema é que Joe também era manipulador, mentiroso, abusava de seus alvos amorosos e, em última instância, também era um assassino. A questão é que a série se empenhou tanto em aprofundar essa imersão na mente de seu protagonista, que conseguiu um resultado alarmante: ela tornou esse assassino, adorável.
Em sua primeira temporada, You tinha um ritmo alucinante, reviravoltas, ganchos, perseguições emocionais, tudo que faz uma série de sucesso na televisão contemporânea. Mas a distorcida maneira como Joe via os próprios atos encontrou ecos e ele passou a ser defendido. Os criadores tinham acertado na forma da série, no seu apelo narrativo. Mas, tinham errado feio na forma como amplificaram a voz de tamanho monstro. A missão para a segunda temporada era clara: manter o ritmo, mas minar o impacto positivo de Joe, dando a ele mais equilíbrio, para que a violência e o abuso não passassem a ser, novamente, “apenas exageros de um homem apaixonado”.
Menos “Você” e Mais “Ela”
A nova temporada se apoia novamente em Caroline Kepnes e seu livro Hidden Bodies, que conta quais foram os caminhos de Joe após deixar Nova York. O discurso dele é o de não se apaixonar mais, mas a narrativa o faz conhecer – ironicamente – uma moça chamada Love (Victoria Pedretti). A partir daí a história muda um ou outro detalhe, mas vai repetindo descaradamente todo o cenário da primeira temporada. Joe trabalha com livros, sai do posto a hora que quer, tem uma jaula de vidro escondida, uma vizinha problemática e sentimentos paternalistas por uma criança prodígio. Com isso tudo montado, restava saber se algo iria sair do lugar-comum ou não.
O retorno de Candance (Ambyr Childers) parecia uma maneira de evitar obviedades. Afinal, ele não acontece no livro, então seria uma forma de surpreender todos os públicos. A presença de Candance também poderia resolver um problema: as vítimas de Joe nunca tinham tempo de tela suficiente para que a perspectiva delas alcançasse o público. Elas não tinham voz. Love ainda estava no escuro, mas Candance era uma sobrevivente que poderia ter muito o que dizer.
De fato, em meio ao novo miolo de reviravoltas e surpresas (a série ainda é muito boa em entregar isso), You organizou corretamente suas correlações. Candance, Love e Forty (James Scully) são três personagens que foram vítimas de abusos; e a perspectiva deles poderia ser unificada a ponto de reduzirem o apelo de Joe perante o público. Porém, os criadores fazem escolhas estranhas e esvaziam essa possibilidade, como se não tivessem entendido que simplesmente acompanhar os extremos do protagonista não seria suficiente para que ele não parecesse sempre absolvido. E convenhamos, Joe sempre é absolvido.
Um a um, todos os contra-argumentos de Joe são varridos. O que fazem com Candance é imperdoável. O que fazem com Delilah é terrível, mas acaba sendo eclipsado pela forma como Joe “protege” a aresta solta que fica pelo caminho. Além disso, achando-se muito ousados, os roteiristas distorcem a personalidade de Love, a tornam o resultado empático definitivo; e com isso Joe só parece mais sensato. Ele é quem promove contra si mesmo, porque, vejam só, o alguém mais louco que ele só poderia ser uma delas. Chegamos ao extremo de ter um outro abusador nessa temporada e não só Joe protege uma vítima como é ele quem mata o sujeito. O projeto “Super Joe” segue mais firme que nunca... Pouco importa se ele não pode ser pego agora porque teremos um ano 3. A maneira como o personagem é apresentado sempre parece irresponsável e leviana.
Contudo, assistir You ainda é divertido e surpreendente. Berlanti e Gamble ainda sabem fazer boa televisão e a série é bem escrita, tem bons atores. Seus problemas são de ordem perceptiva, sensorial, o que pode provocar estragos imensos culturalmente falando, mas que passam despercebidos pela maioria. Pode parecer genial dar a um homem com uma personalidade tão terrível uma voz audível a tal ponto. Mas, numa sociedade em que as mulheres são perseguidas e mortas por cônjuges e parceiros todos os dias, é mesmo genial fazer um deles parecer “romântico”? É mesmo tão “maneiro” assim que na dança dos pronomes haja tantos “eles”, tantos “vocês” e nenhum “ela”?
Criado por: Greg Berlanti e Sera Gamble
Duração: 4 temporadas