"Todos os filmes de super-heróis começam com tragédias, com caos. Aí, o super-herói nasce. Sem caos, você não teria o Batman", afirma Neymar Pai, já no trailer da série documental Neymar: O Caos Perfeito. Além de conversar diretamente com o título da produção da Netflix, a frase ecoa uma fala do próprio craque de futebol, Neymar Júnior. Dono de uma pintura que o imagina como uma mistura entre o Homem-Morcego da DC e seu principal vilão, o Coringa, Ney diz ao diretor David Charles Rodrigues: “A família é um círculo próximo, e você é o Batman na vida deles, e para quem não te conhece de cara (sic), eu já sou o Coringa”.
O confronto entre essas duas personas hipotéticas de Neymar, a heróica (o íntimo) e a vilanesca (sua percepção junto ao público), é um dos principais argumentos narrativos de O Caos Perfeito, mas essa síntese ganha novas formas conforme traçamos uma comparação com os arquétipos que, nos quadrinhos e no cinema, moldam essas narrativas.
Pensemos no próprio Batman: do caos que veio com o assassinato de seus pais, um crime cometido pelo vilão Joe Chill, Bruce Wayne renasceu como o Cavaleiro das Trevas; uma figura que representa a vingança dos injustiçados por meio de uma justiça que Gotham City não pôde promover com seu sistema, corrupto. Uma vez reorganizado nessa nova persona, o personagem segue envolto em caos por conta da escalação que ele mesmo convida na violência da cidade: a ascensão de um rol variado de inescrupulosos e teatrais inimigos. No centro deles, emerge o Coringa; um palhaço psicótico que é todo esse caos, encarnado.
Quando o ex-jogador do Paris Saint-Germain (PSG) e colega recorrente da seleção brasileira Daniel Alves cunha a frase sobre o tal “caos perfeito”, que nomeia a série da Netflix, ele o faz sob uma observação: no fundo, Neymar gosta de estar no meio dessa bagunça. De fato, mesmo que o próprio Ney afirme que preferia não ter de lidar com a fama, fica clara a aptidão do jogador à exposição midiática e sua exploração extrema. Outro ícone que extrapolou o futebol para ditar moda em diferentes frentes, o britânico David Beckham é quem pontua como todas as decisões de Neymar — do cabelo, às roupas, chegando até os rolês — parecem pensadas para causar repercussão.
Logo, se o craque brasileiro é no mínimo parcialmente responsável pelo caos que o envolve, seus paralelos com uma figura vilanesca como o Coringa não se resumem apenas à visão da imprensa e do grande público sobre ele. Quando o craque confronta seu pai e opta por deixar o FC Barcelona no melhor momento de sua carreira, mergulhando em uma longa fase conturbada no PSG, é ele quem convida as incertezas à sua jornada do herói particular. Quando decide levar ao limite sua relação já delicada com o clube francês, e novamente desafiar conselhos daqueles próximos a ele para forçar um retorno (frustrado) ao clube catalão, ele parece não se preocupar em repetir erros passados.
Assim, ainda que a relação entre pai e filho (que é também a de um talento e seu agente) seja o principal ponto de tensão da série documental, é Neymar que desponta como principal antagonista de si mesmo em O Caos Perfeito. Enquanto o grosso da narrativa se concentra em provar o heroísmo do craque — exaltado em uma narrativa de superação que atravessa lesões, polêmicas e decepções — muitos dos percalços são causados ou ao menos potencializados por atitudes erráticas dele mesmo. Essa relação conturbada de causa e efeito ainda serve para apresentar Ney sob uma terceira luz: a de vítima de um sistema que atropela jovens talentos por conta da relação cada vez mais estreita entre o futebol e os mais diversos interesses financeiros.
A partir das linhas turvas que dividem a relação entre Neymar Júnior e Neymar Pai entre uma de família e outra, profissional, O Caos Perfeito nos permite vislumbrar de maneira suficientemente clara uma motivação para a rebeldia aparentemente inata do jogador: Desde seus 14 anos de idade, quando firmou um contrato milionário com o Santos Futebol Clube, o atual camisa 10 do PSG se tornou muito mais que um filho. Quer seus familiares e amigos queiram ou não admitir, Ney se tornou, naquele momento, um ativo financeiro vital para não só ele mesmo, como para todos à sua volta. Conforme cresceu como pessoa e jogador, ele o fez ainda mais enquanto marca e empresa — perdendo, no processo, liberdades que talvez nem tenha tido tempo de aproveitar.
Comprar a velha narrativa de que eventuais deslizes do craque são frutos de sua pouca idade é algo insustentável em 2022, ano em que Neymar completa 30 anos. O que O Caos Perfeito faz de mais valioso é permitir, ainda que por meio de uma narrativa arrastada e por vezes irritantemente superficial, que contemplemos um novo ângulo para a questão: é muito mais provável que as teimosas molecagens do eterno “menino Ney” sejam fruto não de um excesso de imaturidade, mas de uma falta de partes da infância que se perderam para sempre e nunca voltarão. Herói, vilão e vítima; o ícone milionário é humano, no final das contas.