Responde pelo nome de Mignonnes a polêmica do dia, ou Cuties em seu título em inglês, um filme franco-senegalês que deu no Festival de Sundance de 2020 o prêmio de direção, na seção de cinema mundial, para a estreante Maïmouna Doucouré. Mignonnes estreou nesta semana na Netflix, antecedido por uma imagem promocional que induz a onda de indignação, porque mostra as protagonistas do filme, meninas francesas de 11 anos, de lycra fazendo poses sensuais em um concurso de dança.
A cena em questão é o clímax do filme de Doucouré, narrado como uma espiral de desespero, a partir do momento em que a personagem principal, Amy (Fathia Youssouf), se muda com sua mãe para um conjunto habitacional novo porque o marido dela vai ter uma segunda esposa. A essa novidade juntam-se as descobertas de adolescência de Amy, da contravenção à primeira menstruação, e a sexualização precoce surge no filme como contraponto crítico aos dogmas islâmicos seguidos pelos imigrantes senegaleses na França.
No pôster usado para o lançamento na França, a cena pinçada é o momento em que as meninas do grupo de Amy (para o qual ela entra em busca de validação) passeiam na rua cheias de sacolas de grife, num delírio meio Sex and the City. É uma imagem isolada que não representa tanto o filme, mas como já carrega uma carga irônica de fácil apreensão é mais segura para ilustrar a divulgação. Já a arte usada pela Netflix como cartaz internacional, do quarteto dançando, não é tão direta na ironia e, tirada do contexto do filme, sugere que Mignonnes talvez seja uma mistura ofensiva de É o Tchan e Honey Boo Boo.
A imagem, espalhada antes da estreia, serviu para movimentar petições exigindo o boicote de Mignonnes. No dia 20 de agosto a Netflix substituiu o pôster e pediu desculpas pela arte “inapropriada”, mas o estrago estava feito. Compare:
O que não deixa de ser duplamente irônico porque a ideia por trás de Mignonnes - do qual o filme tira toda a sua força, o que pode ser atestado agora que a estreia enfim aconteceu - é justamente sugerir um contexto novo para olhar a sexualização precoce como sintoma de um desarranjo social maior. Doucouré é muito boa para encontrar imagens-sínteses de uma quebra entre gerações (como a cena em que Amy aproveita que está coberta com o véu durante a oração coletiva para ver clipes sensuais escondida) dentro de um filme que é ostensivamente antidogmático.
Ao mesmo tempo em que Amy escuta das mulheres mais velhas da família que a água “lava os pecados” e é preciso se submeter às vontades do marido, e que sua tia já estava noiva quando tinha 11 anos, ela se vê num mundo em que a hiperssexualização é normalizada pela cultura de massa. Doucouré espelha uma coisa na outra - de um lado a tradição dogmática, do outro as mudanças culturais vertiginosas - para entender os descompassos sociais que ela diagnostica. Fica evidente depois de uns dez minutos que o tal Cuties está bem longe de ser um filme de gincana pela fama ou pelo estilo Kardashian de ser.
Inclusive a forma decidida com que Doucouré vai agregando elementos à jornada de Amy - alusões à vida superficial das redes sociais, referências à importância da educação social na formação adolescente - torna aos poucos Mignonnes um filme bem mais abrangente, discursivamente. A diretora inclusive não se nega às cenas de agressão e o momento em que Angelica e Yasmine trocam socos é mais forte do que os registros de twerking; ambos são sintomas desse descompasso social, mas como a dança chega normalizada ela não causa tanta reação. Pois o que o filme faz, ao intercalar as violências e as danças, é justamente despertar a consciência para a precocidade indevida. Não é um filme que explora o corpo infantil, pelo contrário, é um filme que contextualiza a exploração (que Amy inclusive “herda” da tia) justamente para que voltemos a percebê-la.
No filme, a hiperssexualização é explicada como efeito instintivo dos dogmas que por séculos colocam a mulher em posição submissa precoce. Outra imagem de síntese forte, nesse sentido, é a câmera lenta com close-ups das meninas mordendo o dedo, ao som de música sacra. O filme está falando de um curto-circuito geracional entre o dogma religioso e as permissividades do secularismo, mas para perceber é preciso de fato assistir ao filme.
A cena do ritual em que a mãe e a tia tentam limpar Amy e ela “dança” possuída como se estivesse sendo exorcizada é outro exemplo forte da relação que o filme está fazendo entre as descobertas do corpo e os seus pedidos infantis de ajuda. A jornada é intensa - Amy se desenvolve ao longo do filme como uma pequena Tony Montana, dominada pelas pulsões raivosas do que julga ser o papel social destinado a ela - e de certa forma seria negligência da diretora se ela pontuasse essa jornada intensa com imagens escolhidas para minimizar o seu impacto.
O contexto é importante porque tudo no filme é espelhado e precisa desse referencial para ganhar sentido. Uma das imagens derradeiras não seria outra senão a mãe toda arrumada para o recasamento do marido, diante da filha também vestida de roupa brilhante para se expor ao mundo.
Em entrevista ao Deadline, Maïmouna Doucouré diz que tem recebido ameaças de morte e outros ataques depois da controvérsia do pôster nas redes. Diz também que recebeu um telefonema do copresidente da Netflix, pedindo desculpas pela escolha do cartaz, do qual Doucouré diz não ter participado.