Com The People v. O. J. Simpson: American Crime Story, Ryan Murphy transformou a reputação de Marcia Clark, até então conhecida como a infame advogada que perdeu o caso contra o jogador de futebol americano. Através da performance de Sarah Paulson, ele fez de Clark em um símbolo feminista, jogando luz nos obstáculos que ela enfrentou por seu gênero e focando na maneira como ela foi representada pela mídia da época. Agora, Murphy e Paulson parecem se unir em um projeto que pode fazer o mesmo para uma das maiores vilãs da história do cinema, uma que os cinéfilos amam odiar: a Enfermeira Ratched, de Um Estranho no Ninho.
Criada por Ken Kesey no livro de 1962, a personagem foi levada às telas por Louise Fletcher na adaptação de 1975 comandada por Milos Forman e se tornou sinônimo de crueldade e autoridade. No longa, Ratched é a enfermeira chefe de uma ala psiquiátrica para onde Randle McMurphy (Jack Nicholson) é levado para terminar de cumprir sentença pelo estupro de uma garota de 15 anos. O longa se tornou um clássico absoluto, e é um dos únicos filmes da história a levar os 5 maiores prêmios no Oscar: Melhor Filme, Ator (Nicholson), Atriz (Fletcher), Diretor e Roteiro.
É bem possível que para assistir Ratched, a série de Murphy que estreia na próxima semana, não seja necessário uma introdução à personagem, até porque a produção pretende servir como prelúdio de sua história. Mas assistir Um Estranho no Ninho é uma experiência sempre válida (o longa está disponível no Prime Video), que curiosamente mudou com o tempo. Em 2020, não é preciso de Murphy para questionar a reputação de Ratched. O clássico reinterpretado já é uma experiência por si só.
Existem duas maneiras de enxergar Um Estranho no Ninho e a própria Ratched. A primeira, intencionada pelo autor e pelo diretor, é uma representação do contraste entre o tradicionalismo e a contracultura americana, que ganhava força na década de 60. No filme de Forman, McMurphy é um revolucionário, que traz felicidade para a vida dos pacientes fazendo-os questionar a autoridade de Ratched, e se colocando como um grande incômodo na vida da enfermeira. No filme, Nicholson é o herói, apesar do seus crimes, e é representado como um rebelde carismático, um símbolo de individualismo. Nesta leitura, Ratched é o sistema e a corrupção de poder. Não é à toa que Fletcher, intérprete que tornou a personagem imortal, via muito do Presidente Nixon na enfermeira.
Foi baseada nesta interpretação que Fletcher construiu a personagem, sendo fundamental para o resultado final. Em entrevista à Vanity Fair, a atriz explicou que enquanto o livro descreve Ratched como uma mulher maléfica e muito mais psicótica, o filme buscou criar a personagem de modo mais humano, o que a torna ainda mais horripilante. “É muito mais poderoso se ela não for visivelmente má", explicou a atriz. "Ela é um instrumento do mal. Ela não sabe que é má. Na realidade, ela acha que está ajudando as pessoas". Assim, Fletcher construiu uma mulher amedrontadora, porém serena, plena, e um exemplo de disciplina.
Um Estranho no Ninho em 2020, no entanto, permite novas maneiras de interpretação. Ratched permanece impiedosa e nunca deixa o posto de vilã - e grande vilã - mas é difícil assistir o filme novamente sem questionar o heroísmo do estuprador, e inevitavelmente simpatizar com a figura de autoridade. Hoje, Ratched de Um Estranho no Ninho soa muito como a representação do medo masculino da autoridade feminina. É bem possível que a série de Murphy brinque com as duas interpretações - diferentes, mas nada contraditórias.
Ratched estreia na Netflix em 18 de setembro.