Diziam as más línguas, na época da exibição da primeira temporada de O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder, que a série se movia devagar demais para o próprio bem. Embora haja algo de “geração TikTok” nessa reclamação - e este que vos fala certamente se concentrou em desmontar o argumento quando escreveu a crítica do primeiro ano -, é claro que há também um fundo de verdade. Diante do desafio gigantesco de expandir o universo de J.R.R. Tolkien, o mais próximo de um texto sagrado que os fãs de fantasia podem ter, os showrunners J.D. Payne e Patrick McKay escolheram correr riscos calculados, iniciando a jornada desta nova Terra Média como quem testa a água fria de uma piscina com a pontinha do dedo do pé, ao invés de pular de cabeça nela para lidar com o choque térmico de uma vez.
Bom, parece que - até ironicamente - a reclamação do público sobre o ritmo cauteloso da primeira temporada fez com que os dois roteiristas incentivassem sua equipe a finalmente dar esse mergulho. Nos primeiros três episódios da segunda temporada, vistos com antecedência pelo Omelete, Os Anéis de Poder se mostra um novelão profético-apocalíptico, uma extravagância de fantasia e uma narrativa épica de múltiplas frentes muito mais desavergonhada, e mais segura de si mesma, do que foi nos capítulos anteriores. Se isso vai convencer os detratores da série ou não, é outra história - o que importa é que, para os fãs do gênero que andam desesperados por algo que mate sua sede de mitologia, ação e drama, Os Anéis de Poder traz refrescos abundantes direto da fonte.
Até a estratégia de lançar três episódios de uma vez na primeira semana de exibição da temporada, já usual do Prime Video (e frequentemente questionável por diluir o hype das produções de lançamento semanal), cai bem aqui. Isso porque Os Anéis de Poder precisa de três capítulos para nos inteirar de todas as vertentes de sua trama; indicar, ao menos provisoriamente, para onde cada uma delas está se encaminhando; e apresentar ao espectador o seu novo ritmo, seu novo espírito destemido de quem conhece e não hesita em explorar os cantinhos mais amados da obra de Tolkien, seja na abundância de criaturas que fazem suas aparições nesses primeiros episódios ou no tom mais melodramático que tomam os diálogos rebuscados da série.
Porque sim, Os Anéis de Poder voltou com mais fome de fantasia, mais entrega aos chavões criados por Tolkien e reproduzidos ad aeternum por seus discípulos do gênero, mas também voltou entendendo melhor que a alta fantasia não deixa de ser um novelão. Daí que a relação entre Galadriel (Morfydd Clark) e Elrond (Robert Aramayo) escancara os seus subtons mais complicados, seja na sugestão romântica entre eles, na mágoa que se constrói diante da sedução de Galadriel pelos anéis deixados por Sauron (Charlie Vickers), ou no jogo de poder que envolve as suas colocações na hierarquia de honra militar élfica. Daí também que a tensão política em Númenor, com o retorno da rainha cega Míriel (Cynthia Addai-Robinson) em seu estado fragilizado, abandona a pretensão de Game of Thrones e abraça o teatro choroso da líder enlutada que é traída por compatriotas. E por aí vai - o ajuste de tom é claro em todas as subtramas da série.
E esse senso melodramático mais afiado se reflete até nas composições da direção, compartilhada nesses primeiros episódios entre Charlotte Brandstörm (retornando da equipe de diretores da primeira temporada) e Louise Hooper (Sandman). Encenando os confrontos verbais entre seus personagens de forma muito mais dinâmica, trabalhando a luz como força expressiva da posição e estado de espírito desses personagens, abusando da câmera lenta para frisar os momentos definidores de grandes destinos da Terra Média… Os Anéis de Poder resgata um procedimento muito caro aos filmes de Peter Jackson, que capturaram a grandiosidade de Tolkien por meio do operático, do novelístico, de certa entrega ao kitsch que não necessariamente significa o bom humor gaiato que nos acostumamos a conectar ao termo.
Não se preocupe: Os Anéis de Poder ainda se leva tremendamente a sério como história de personagens em busca de sua casa, de seu destino, de um lugar seguro onde possam entender e afirmar sua identidade e seu papel no mundo. O que a série parece ter entendido, nessa segunda temporada, é que existe um jeito mais autêntico - e muito mais divertido - de se elevar ao pedestal onde todo mundo já parece colocar a franquia da qual ela faz parte.