Drive My Car e A Pior Pessoa do Mundo: a disputa mais fascinante do Oscar 2022

Créditos da imagem: Cenas de Drive My Car e A Pior Pessoa do Mundo (Reprodução/Montagem Omelete)

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Drive My Car e A Pior Pessoa do Mundo: a disputa mais fascinante do Oscar 2022

São dois grandes filmes muito diferentes que versam sobre o mesmo tema

Omelete
4 min de leitura
30.03.2022, às 11H24.

Perto do fim de Drive My Car, o diretor Ryûsuke Hamaguchi permite que espiemos um trechinho da apresentação de estreia de Tio Vanya, a peça na qual os personagens do filme estiveram trabalhando durante toda a trama. Nela, a atriz Lee Yoo-na (Park Yu-rim) entrega, em língua de sinais sul-coreana, um monólogo dilacerantemente belo em resposta a uma reclamação do protagonista Yûsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima), que diz estar profundamente deprimido. 

O que podemos fazer? Temos que viver nossa vida”, questiona ela logo no começo. À parte das performances espetaculares dos dois atores envolvidos, a cena ecoa por apresentar, na sua profunda e aliviada resignação aos caprichos do destino, uma resposta simples às angústias e tragédias que o filme desenrola para cada um de seus personagens. Ao emprestar as palavras do dramaturgo Anton Chekhov, Hamaguchi sublinha a tese central de Drive My Car: a vida é difícil, as coisas dão errado, o mundo cai na nossa cabeça… e nós seguimos em frente, porque qual é a alternativa?

O Oscar 2022 aconteceu na noite do último domingo (27), e consagrou Drive My Car como o vencedor da categoria melhor filme internacional. Vitória merecida, mas ainda é tempo oportuno - ou, ao menos, espero que seja - para notar como ele o norueguês A Pior Pessoa do Mundo, que era o outro favorito na disputa pela estatueta, são ao mesmo tempo filmes profundamente diferentes e histórias intrinsecamente semelhantes.

Em A Pior Pessoa do Mundo, Joachim Trier não nos oferece uma síntese tão fácil de sua visão de mundo quanto Hamaguchi faz através do seu artifício teatral. A epopeia da vida de Julie (Renate Reinsve, nada menos que sublime), no entanto, comunica a mesmíssima sensação que Lee Yoo-na resume tão bem naquele monólogo de Tio Vanya. Enquanto ela passeia por paixões e indecisões, por términos e incertezas, por perdas devastadoras e momentos de euforia, Trier parece dizer, fundamentalmente, que o mundo nunca pára de girar, que o tempo nunca nos espera fazer as pazes com ele para seguir em frente.

É claro que é irônico dizer isso quando a cena mais inesquecível de A Pior Pessoa do Mundo mostra justamente o tempo parando para Julie poder se encontrar com Eivind (Herbert Nordrum). O momento catártico de escape fantasioso, com a protagonista correndo pelas ruas enquanto todos os outros pedestres e carros permanecem parados, é um dos muitos artifícios aos quais Trier se permite em seu esforço de fabular, mistificar, desvelar a magia dessa vida imprevisível que Julie leva, e que todos nós levamos.

É aí que mora a diferença de forma entre Drive My Car e A Pior Pessoa do Mundo. Apesar de ambos buscarem iluminar o lado belo de um detalhe incômodo da natureza humana (o quanto estamos entregues e vulneráveis a um mundo e um destino impossíveis de domar, prever, controlar), eles o fazem através de caminhos distintos. 

Hamaguchi encontra essa luz através da paciência, de um filme de quase 3h profundamente dedicado à mística da fala humana, à forma como construímos nossas histórias e nossas conexões. A câmera do japonês é afeita a revelar o sentimento por trás dos detalhes do banal - sua busca é sempre por registrar o irregistrável, o indizível. Enquanto isso, Trier usa a artificialidade própria do cinema para inventar sensações, ilustrar cada uma delas em tela sem o mínimo de consideração ao que é real ou irreal. O importante é o que você sente que é real, ou emocionalmente verdadeiro, sobre o filme.

Não é sobre uma abordagem ser melhor do que a outra, diga-se de passagem. Eu não invejo os votantes da Academia, porque julgar arte como competição é uma tarefa impossível, especialmente quando duas obras tão vitais, tão tocantes e tão tecnicamente espetaculares são colocadas frente a frente dessa forma. Reconhecer os paralelos e diferenças entre Drive My Car e A Pior Pessoa do Mundo é muito mais uma questão de apreciar como o empreendimento de fazer arte, de contar histórias, é essencialmente inesgotável.

Duas pessoas diferentes jamais serão capazes de contar a mesma história, mesmo quando estiverem mirando em dizer a mesma coisa com ela. Acima de vencedores e perdedores, acima da politicagem do Oscar (e, inclusive, do absurdo de celebrar os filmes americanos como superiores aos “filmes internacionais”), o prazer de amar cinema é redescobrir e relembrar em cores e palavras diferentes, todas as vezes, as mesmíssimas coisas.

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