Que irônico que Utopia, um antigo projeto de Gillian Flynn (Garota Exemplar) que trata sobre uma epidemia viral, finalmente faça sua estreia em pleno ano da pandemia. Cheia de reverência a clássicos da década de 1980 com uma boa dose de reviravoltas e sangue, a série derrapa em seu ritmo e perde a chance de se firmar como um dos grandes lançamentos desse período conturbado.
Remake americano de uma série britânica, Utopia acompanha um grupo de jovens nerds em busca de uma HQ que acreditam ter o poder de prever - e impedir - doenças que afligem o mundo real. Coincidentemente, essa busca acontece junto ao surgimento de uma nova epidemia mortal, que fez com que os caminhos dos jovens cruzem com o desacreditado médico Michael Stearns (Rainn Wilson) e o mega-empresário Kevin Christie (John Cusack).
Com uma trama que infelizmente espelha eventos do mundo real, Utopia começa sua temporada com o pé direito. Os episódios iniciais se aproveitam de uma dinâmica estabelecida no cânone da cultura pop em obras como Os Goonies ou It - A Coisa para fazer com que o público se sinta parte do grupo de nerds que saem em uma jornada de mistério, o que ganha rumos ainda mais inesperados com o aparecimento de Jessica Hyde (Sasha Lane), a protagonista da HQ fictícia que, surpreendentemente, é uma pessoa real nesse universo.
Desenvolvendo cada um dos membros da “equipe” com calma, o roteiro cria uma grande sensação de familiaridade e segurança, que são quebradas com requintes de crueldade por reviravoltas inesperadas que ampliam a tensão em torno de uma trama que já se inicia urgente. O grande problema é que a tal calma é deixada em segundo plano e a narrativa toma caminhos mais interessados em chocar do que consolidar uma história.
Após estabelecer seus personagens e colocá-los em rota de colisão, Utopia passa a derrapar com uma sequência de boas ideias mal encaixadas. Ao familiarizar a audiência com esse mundo e a facilidade com que as coisas podem mudar, a série promete uma jornada explosiva que é muito prejudicada por seu desenvolvimento. O cuidado inicial na construção dos heróis e vilões se perde, o que faz com que alguns fiquem apagados enquanto outros acumulam funções que pouco se justificam.
É especialmente decepcionante perceber que Utopia recorre ao sangue e ao choque como ponto principal de sua história, já que caminha perfeitamente bem sem ter que apelar para o gore. Não que sanguinolência seja algo necessariamente ruim, mas perde muito da força quando se joga fora o desenvolvimento de todo o resto para isso.
Se o início da temporada suscita comparações com Stranger Things ao apresentar um grupo de jovens em uma jornada sobrenatural, é curioso que Utopia tente se provar mais madura através do gore, algo que a produção da Netflix também utiliza. Porém, se a aventura em Hawkins usa o recurso de forma pontual, se fazendo chocante (ou nauseante) justamente pela surpresa, a produção do Prime Video dissolve o impacto ao abusar desse artifício. Somada a sangueira às saídas convenientes que surgem para tirar - ou colocar - os protagonistas em problemas, o roteiro da série dilui suas principais qualidades, que só são retomadas pouco antes do final da temporada.
Um dos pontos altos da produção é, sem dúvidas, a entrega de seu elenco. Desde os veteranos Rainn Wilson e John Cusack até os jovens talentos do grupo de nerds composto por Wilson Wilson (Desmin Borges), Sam (Jessica Rothe), Ian (Dan Byrd), Becky (Ashleigh LaThrop) e Grant (Javon Walton), há um grande empenho para criar personalidades carismáticas, que convencem até dentro de figuras tão estereotipadas como o conspiracionista, o incrédulo e a idealista, por exemplo.
Justiça seja feita, Utopia não é uma série ruim. Mesmo com todas as suas falhas, a primeira temporada fecha com saldo positivo causado pela característica escrita de Gillian Flynn, que cria um suspense intrigante com surpresas que brincam com clichês. Esse senso de perigo constante somado ao carisma de seus personagens faz com que o seriado decepcione justamente por entregar algo satisfatório quando havia espaço para ser algo excelente.
Criado por: Gillian Flynn
Duração: 1 temporada