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Artigo

Invisibilidade e sobrevivência: Omelete entrevista Will Eisner

O autor conta como Invisible People se encaixa na sua criação

06.03.2017, às 11H55.

[Texto publicado originalmente em 25 de novembro de 2002]

Um dos grandes mestres em sua arte, o quadrinhista americano Will Eisner sempre encantou gerações com o olhar benevolente e o forte conteúdo crítico de suas graphic novels - termo que ele mesmo adotou para denominar seus álbuns de luxo.

Desde o sucesso de Spirit, nos anos 50, Eisner tem provado que nem sempre o universo das HQs é habitado só por super-heróis. Na aclamada Invisible People, no entanto, Eisner vai um pouco mais além: tenta mostrar que não apenas heróis costumam usar seus poderes especiais para sobreviver aos grandes perigos do dia-a-dia. Pessoas comuns também podem, por exemplo, tornar-se invisíveis umas às outras. "Em cidades superpovoadas, a invisibilidade tornou-se tanto uma ferramenta de sobrevivência quanto um predisposição aceitável", afirmou ele em entrevista ao Omelete.

O anonimato corriqueiro dos moradores das grandes metrópoles era uma ideia que sempre perseguiu Eisner, um filho de imigrantes judeus e nova-iorquino de coração. O lampejo que o fez, mais uma vez, descer sua linha suave sobre papel foi uma notícia de jornal. "A inspiração veio de Carolyn Lamboly, uma mendiga na Flórida cujo pedido de ajuda ao governo desapareceu na burocracia do sistema. Desesperada e sozinha, um pouco antes do Natal de 1990, ela se enforcou", conta. "Ironicamente, em 3 de janeiro de 1991, sem saber de sua morte, o condado de Dade liberou uma verba extra que permitia a um asilo abrigá-la." A notícia dizia ainda que seu corpo permanecera dois meses no necrotério sem que nenhum parente o reclamasse, e então foi enterrado numa vala comum. Carolyn, esquecida pelo mundo, comoveu Einser, que a imortalizou na dedicatória de Invisible People.

Ironicamente, há cinco anos, Will Eisner mudou-se para a mesma Flórida que ignorou Carolyn. Diz que a vida em Taramac, uma pacata cidade suburbana, não alterou sua percepção sobre a vida invisível na cidade grande. "Minha perspectiva geral sobre as pessoas não mudou em nada. O que realmente muda é a reação das pessoas em diferentes ambientes. Isso é algo que ainda me fascina." Sem dúvida, esta fascinação de longa data está nos três retratos que compõem Invisible People; um trio de coadjuvantes urbanos, que, para Eisner, merecem posição de protagonistas. "Eu tenho um interesse especial nas pessoas comuns, que, como todo nós, estão sempre lutando com a vida. Eu conto suas histórias, porque meus leitores podem se identificar com elas", admite.

O alfaiate Pincus, o mendigo Morris e a bibliotecária Hilda, no entanto, são personagens analisadas menos em suas reações ao ambiente, como pretende Eisner, do que diante de grandes forças superiores, intangíveis, que (des)governam abstratamente suas vidas. Uma segunda invisibilidade, talvez.

Para Morris, protagonista da tocante história "The power", esta força é a fé que ele usa para curar miraculosamente pessoas enfermas. Já para Hilda, que encerra o livro no conto "Mortal combat", a força é o amor de um tímido colega de trabalho. Eisner acredita que ambos sofrem de um tipo bastante peculiar de invisibilidade que "não os torna ausente para as outras pessoas, mas para a vida em si". A despeito de seu assombroso poder, nada em Morris precisa ser curado mais do que sua própria existência. E Hilda, que passou 40 anos cuidando do pai moribundo, só consegue viver de verdade quando se apaixona pela primeira vez. Infelizmente, terá que disputar com a sogra a atenção do homem que ama, e o título do conto já deixa claro que, para que a mensagem do livro seja permanente, sua redenção deverá ser transitória.

Para quem acredita que "Mortal Combat" e "The Power" são visões excessivamente pessimistas, Eisner replica que elas são reais e, por isso mesmo, atemporais. "O tempo passou, mas não mudou muito a necessidade do homem de se proteger de outros seres humanos", afirma o autor. Segundo ele, ignorar um ao outro é uma forma de invisibilidade protetora que as pessoas acatam. "Hoje temos novos aparelhos tecnológicos para isso, como telefones e a internet, que simplesmente nos garantem anonimato, mas ainda não nos destituem da invisibilidade."

O solitário Pincus Pleatnik, terceiro protagonista de Invisible People, pode ser o melhor exemplo. Como ele, a história é bem diferente: deliberadamente, essa personagem prefere se transformar em alguém de quem ninguém se lembra e com quem ninguém se importa. "Para ele, há santuário na invisiblidade", narra a tragicomédia "The Sanctum". Só que Pincus dispõe-se alegremente como uma engrenagem no sistema, sem nunca questionar o que aconteceria quando o sistema falhasse. Depois que um jornal publica por engano seu obituário, Pincus passa, de fato, a desaparecer, perdendo sua casa e seu emprego. "Eu penso no sistema como um ambiente. Não nos vejo necessariamente escravizados por ele. Prefiro acreditar que nos envolvemos como ele da mesma maneira que um fazendeiro lida com o clima", filosofa o quadrinhista.

E quanto ao trabalho operário em massa, tema tão caro às graphic novels de Eisner desde os tempos de sua autobiografia No Coração da Tempestade? Pincus perde seu emprego numa disputa do sindicato, mas também porque não havia nada em sua função que o tornasse único, atuante, visível. "Eu não acredito que o trabalho repetitivo e sem sentido faça parte do meu conceito de invisibilidade, nem do de Pincus. Trata-se só de um refúgio da competitividade do mercado, ainda que seja uma falha social", diz. Supõe-se que Eisner queira apenas evitar celeuma - quando perguntado sobre as dúvidas e os confrontos da fé levantados pelo conto "The Power", ele também se esquiva. "Meu livro é mais uma mera observação do que uma polêmica moral."

Com Invisible People, Eisner nos força a confrontar os rostos que convenientemente preferimos ignorar no nosso dia-a-dia atribulado. É emblemático da maturidade que quer trazer aos quadrinhos, que como a boa arte frequentemente deixa de ser sobre o eu para ser sobre o outro.

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