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Pantera Negra | Atual e politizada, série da Marvel é a melhor base possível para o filme

No papel, Ta-Nehisi Coates se engaja em discussões que podem beneficiar a adaptação ao cinema

23.01.2018, às 18H02.
Atualizada em 29.01.2018, ÀS 14H05

O primeiro ano do roteirista Ta-Nehisi Coates à frente da série do Pantera Negra influencia o filme do Marvel Studios não só por uma questão de timing - a fase de Coates começou em abril de 2016, quando o longa de Ryan Coogler estava começando a definir seu elenco - mas também de pertinência. O legado de Coates é o de uma HQ politizada que reflete questões atuais de representação e responsabilidade.

Marvel Comics/Reprodução

Se o filme enfoca o desafio de T'Challa de se provar um herdeiro digno do trono do falecido rei, na HQ a situação começa de forma parecida: Wakanda tem sua autoestima abalada depois de sucessivos ataques ao território nacional, antes tido como impenetrável, enquanto T'Challa se ausentava combatendo ameaças globais ao lado dos Vingadores. Quando retorna ao lar, T'Challa - chamado pejorativamente de haramu-fal, "o rei órfão" - também precisa se provar digno, quando todo o seu povo vê nele um defensor omisso.

Em uma trama que começa em desobediência e insurreição e leva à guerra civil, pegando emprestados da realidade elementos como células terroristas, interesses econômicos e guerra de informação, Coates constrói em Black Panther uma parábola sobre o uso da força e o peso da coroa que obviamente ecoa no mundo de hoje. A responsabilidade social de governar, que tanto atormenta o super-herói, ecoa na HQ as preocupações que hoje envolvem toda a discussão a respeito das democracias ocidentais, suas brechas, suas limitações.

Nos EUA de hoje, sob o governo Donald Trump, em que o Estado confunde seus deveres com seus supostos direitos adquiridos, é muito atual a forma como Coates cria - a partir dos elementos folclóricos africanos que tornam a HQ bastante rica em termos de mitologia - núcleos em Wakanda para opor o pagão (Tetu e as forças da natureza) e o comunitário (a união de mulheres em volta das Dora Milaje rebeldes) contra o aristocrático, o Estado-Nação em si, representado no sangue azul de T'Challa. Coates escreve cenas no palácio real com serviçais nos cantos dos quadros, respeitando sempre hierarquias, modos empolados de fala. Não é um retrato maniqueísta; mulheres e homens aparecem servindo bebida à família, escoltando-os, prestando deferência, tudo com naturalidade, e aos poucos percebemos como o desconforto com as distâncias (sempre o aristocrático longe, descolado da realidade) passa a permear tudo - principalmente os conflitos de T'Challa, que ao final do arco colocará em xeque a própria organização política de Wakanda em direção a uma noção nova de governo para o povo.

Quando Shuri fala na edição #9 que Wakanda caiu porque acreditou em seus próprios mitos (depois que Changamire assume seu erro por acreditar que "o povo no poder" seria um mote autossuficiente numa nação avançada como aquela), Coates afinal pode estar muito bem falando dos EUA, cujo ideal democrático tão incensado (e "exportado") tem sido testado na sua essência. Depois de um ano de Black Panther, com várias edições que não se preocupam tanto com o dia a dia de batalhas lutadas numa guerra, e que se desenrolam com elipses que assumem que certos eventos (como alianças de guerra que se formam) não precisam ser contados para que um painel completo se forme, o resultado é uma narrativa densa e palavrosa que tem uma velocidade toda própria, cheia de discussões dialéticas e digressões sobre fábulas e história oral, e com ela Coates basicamente nos força a entender a HQ como uma grande analogia política - porque sua ambição literária aqui é inequívoca.

O primeiro arco, da ameaça de Tetu, não se encerraria de outra forma senão louvando a história - a História com H maiúsculo, passada de geração a geração, sem a qual nada se aprende na constante construção de uma nação. Percebe-se sempre que a preocupação do autor é sempre o big picture - como eventos repercutem na História, como afetam desde a população aos grandes personagens em cena. Coates não é particularmente desenvolto ou arrojado na hora de escrever cenas de ação. Depois de deixar as batalhas contra Tetu implícitas no primeiro arco, no seguinte, que aborda o desaparecimento dos deuses, a "ameaça" também é deixada sugerida no texto, o desarranjo do clima de Wakanda; Coates não está interessado nessa ação mas nunca perde de vista que os perigos vitimam principalmente os mais fracos e vulneráveis. É um enfoque social sempre, ainda que a trama trate de batalhas contra homens-cobras e yetis.

Coates está interessado nos grandes temas, afinal. A forma como Black Panther espelha nossas questões no mundo real não é panfletária, porém. O autor vai à essência da questão, busca entender não apenas o que faz um rei mas também o que faz um herói, e os conflitos de T'Challa - suas obrigações como defensor de Wakanda e como Vingador - por circunstanciais que sejam são encarados pelo autor como conflitos profundos de identidade. Se Ryan Coogler pegar essa essência para sua adaptação ao cinema, o filme de Pantera Negra será capaz, pelo menos, de se engajar e enformar um arco de origem bastante sólido para o personagem.

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