“Nas montanhas da Bolívia (...), todo ano, as pessoas mais pobres se reúnem em vilas no alto dos Andes para celebrar o festival ‘Tinku’. Lá, os homens do campo arrebentam uns aos outros na porrada. Bêbados e ensanguentados, eles socam uns aos outros apenas com os punhos e cantam: ‘Nós somos homens. Nós somos homens. Nós somos homens...’ Os homens lutam com os homens. Eles lutam do mesmo jeito que têm feito há séculos”
Assim Chuck Palahniuk encerra o posfácio da reedição de 2012 de Clube da Luta. A obra, publicada originalmente em 1996, conta a história de um homem medíocre que busca um sentido para a vida em lutas clandestinas em porões empoeirados na cidade onde mora. Anti-herói cínico e autodestrutivo, Tyler Durden transforma a vida do narrador, apresentando um mundo fora dos limites de uma sociedade fútil e consumista. O narrador encontra alívio e redenção após horas de luta, mas o relacionamento com Tyler se transforma em algo muito pior.
Para comemorar o aniversário de 20 anos do lançamento do livro nos Estados Unidos, a LeYa, em parceria com o Omelete, preparou uma edição comemorativa para colecionadores em capa dura, com o roteiro completo do filme de David Fincher e uma entrevista de Chuck Palahniuk realizada durante a San Diego Comic-Con de 2014.
* Chuck Palahniuk: Muito além de Clube da Luta
Do papel para a tela
O conto original de sete páginas, criado por Chuck em um curso de escrita criativa, descreve a icônica cena em que o narrador senta em sua cadeira de trabalho e, visivelmente ferido, chama a atenção de seu chefe. Porém, obedecendo às regras do Clube da Luta, não pode revelar nenhum detalhe sobre o que faz depois do expediente. A cena, que se tornou uma das mais famosas do livro, chamou a atenção de editores norte-americanos, e Chuck escreveu a primeira versão da obra em três meses após receber um pequeno adiantamento.
O livro foi bem-recebido pela crítica norte-americana, sendo considerado por muitos uma atitude corajosa da editora publicar um livro de temática incômoda, original, violenta e hilária. Com o início bem-sucedido de vendas do livro, o interesse de Hollywood em uma possível adaptação começou a aumentar. Responsável por transformar em filme o romance de Palahniuk, o diretor David Fincher se interessou pelo projeto depois que o agente Josh Donen lhe apresentou o trecho em que Tyler Durden faz um de seus “sacrifícios humanos”, colocando uma arma na cabeça de Raymond K. Hessel, funcionário de uma loja de conveniência, para convencê-lo a voltar para a faculdade.
Depois de ler o livro todo em uma única noite, Fincher decidiu que precisava comandar a adaptação - “Eu não conseguia parar de rir. Quem não quer ver empresas de cartão de crédito explodindo?”. O cineasta tentou então comprar os direitos do romance, que já estavam com a 20th Century Fox. Coincidentemente, o estúdio buscava alguém para comandar o roteiro do novato Jim Uhls. Antes de chegar em Fincher, porém, a vaga passou pelas mãos de Peter Jackson, que estava ocupado com Os Espíritos; Bryan Singer, que recebeu, mas não chegou a ler o livro; e Danny Boyle, que leu o livro e chegou a se encontrar com o produtor Ross Bell, mas preferiu seguir com outro projeto.
O modesto orçamento inicial de US$ 23 milhões se transformou em US$ 63 milhões para atender à visão do diretor, que também convenceu o estúdio a manter a narração em off (considerada “vulgar” pelos produtores, mas a fonte do humor do livro, segundo Fincher) e a ter Edward Norton como protagonista (Matt Damon era o primeiro nome cotado para a vaga). Cifras de uma produção hollywoodiana que para Palahniuk têm a mesma essência do ponto de virada do livro: “A piada final era a ideia que o capitalismo comeria as próprias fezes para fazer dinheiro, que faria piada consigo mesmo se pudesse lucrar com isso”.
De inimigo à "vítima" do capitalismo
Apesar do rótulo de filme “anti-encontro romântico”, Clube da Luta chegou a estrear nos EUA em primeiro lugar no fim de semana de 15 a 17 de outubro de 1999, fazendo US$ 11,03 milhões no fim de semana, um pouco acima de Risco Duplo (Double Jeopardy, 1999, que fez US$ 10,23 milhões na sua quarta semana em cartaz, e do outro estreante A História de Nós Dois (The Story of Us, 1999), com US$ 9,67 milhões. Falhando em agradar o público geral para ganhar o necessário boca a boca, o filme teve uma queda de 42,6% no segundo fim de semana (fazendo US$ 6,33 milhões). Fechou sua arrecadação nos EUA depois de 11 semanas em cartaz com apenas US$ 37,03 milhões. Internacionalmente, fez US$ 63,82 milhões, totalizando uma bilheteria mundial de US$ 100,85 milhões.
O sucesso veio apenas com o pioneirismo em outra mídia: Clube da Luta vendeu 13 milhões de cópias em DVD desde o seu lançamento. Fincher esteve envolvido com o novo formato desde a embalagem, sendo um dos primeiros cineastas a supervisionar a transição de um longa para o home video. Com o êxito nas vendas, US$ 55 milhões somados em locações e uma bilheteria internacional razoável, Clube da Luta fechou a conta no positivo, cobrindo o seu custo, deixando um lucro de US$ 10 milhões para o estúdio e transformando Palahniuk em um autor de alcance mundial.
Do êxito também vieram as deturpações da mensagem, como temiam a mídia à época do lançamento e como reclamou Fincher na Comic-Con 2014: “Clube da Luta é sobre a coisa mais perigosa de todas: ideias ”. Uma vez expostas, essas podem ser semeadas, mesmo que o objetivo fosse evitar o seu cultivo. Tyler Durden se tornou o correspondente para os descontentamos do novo milênio assim como Travis Bickle (o personagem de Robert De Niro em Taxi Driver, de 1976) fora uma voz no pós-Guerra do Vietnã. Ao invés de entender o personagem como a consequência extrema de uma crítica social, parte do público assumiu a identidade da transgressão como a necessidade de quebrar as regras que o tornavam infeliz. Tyler não é o vilão, é o herói. Assim nasceram clubes da luta de verdade pelo mundo, formados por tipos variados, de profissionais da indústria de tecnologia a meros adolescentes.
Ironicamente, ao criar o retrato dessa “geração infeliz e violenta", Clube da Luta também se tornou um produto de consumo de massa. Uma promessa de felicidade tão embalada quando os móveis comprados pelo narrador. É essa inconsistência que torna o livro e seus produtos ainda mais especiais, uma possibilidade metalínguistica única em que a obra de arte é ao mesmo tempo “solução” e problema. Assim, o livro que critica o modo de vida do capitalismo foi comprado e catapultado por Hollywood. Seu criador, antes inspirado pela falta de interesse social pôde finalmente se tornar escritor em tempo integral depois que o público abraçou com entusiasmo a sua história.
O legado
Lançado como uma resposta masculina à títulos de agregação feminina em voga na literatura norte-americana da época, Clube da Luta estendeu sua influência além das barreiras de gênero, representando um momento cultural. Clamou que as “coisas que você tem acabam tendo você”, mas continua a figurar como produto nos mais variados meios. A raiva e o senso de humor de Palahniuk despertaram uma geração, que não se libertou das amarras do capitalismo, mas se tornou mais consciente.
Clube da Luta prega uma volta às origens, a vida em pequenas comunidades, com a realização de trabalhos manuais (como o sabão produzido na casa em Paper Street), e a expulsão dos sentimentos mais animais e viris como forma de expurgar o ódio; trabalhar o corpo e transformar o consumo fútil em algo ultrapassado. Duas décadas depois, a mensagem de Chuck segue encontrando ecos. No posfácio do livro, o autor diz que, mesmo após uma extensa obra publicada, homens e mulheres comuns ainda o questionam sobre onde podem encontrar um clube onde possam lutar uns com os outros.
O contrato social continua em vigor, com as coisas, incluindo os produtos relacionados a Clube da Luta, preenchendo espaços, vazios de uma vida cada vez mais virtual, mais teórica do que prática. Novas edições especiais, paródias, bonecos, séries de TV, continuações, obras inspiradas e artigos sobre o legado de Clube da Luta vão surgir. Vamos continuar falando sobre isso, quebrando e criando novas regras - “Essa é a sua vida”.