Em 1961, Stan Lee e Jack Kirby se uniram para a criação da primeira HQ do Quarteto Fantástico, uma família que recebeu dons fantásticos e decidiu usá-los para combater o crime e salvar a Terra dia após dia. Esse foi o ponto de partida do Universo Marvel, que pouco mais de quatro décadas depois, em 2005, ganhou uma nova super-equipe chamada Jovens Vingadores.
Embora a Casa das Ideias já contasse com centenas de heróis, a equipe era formada por personagens inéditos e se destacou graças ao inteligente roteiro de Allan Heinberg, roteirista conhecido por seu trabalho na TV em séries como The O.C., Sex and the City e anos depois seria responsável pelo roteiro do filme Mulher-Maravilha. Entre os novos paladinos estavam Wiccano e Hulkling, que desde a primeira edição da revista Young Avengers vivem um romance que ficou subentendido até se tornar aberto no sétimo número da HQ. Desde então, a dupla e sua equipe se envolveram em grandes eventos como Guerra Civil, Invasão Secreta e O Cerco, até que eles mesmos foram o foco de um, chamado A Cruzada das Crianças. A saga voltou aos holofotes por um triste motivo, afinal a revista foi arbitrariamente considerada imprópria durante a Bienal do Rio. Entretanto, além de toda a controvérsia, esse “polêmico” quadrinho é um grande exemplo de uma boa história da Marvel que reúne todas as características de um clássico da editora - especialmente a capacidade de retratar com fidelidade o mundo em que ela foi escrita.
O ponto de partida para a trama é um confronto entre os Jovens Vingadores e a Sociedade da Serpente, um grupo de vilões do Capitão América que com o tempo ganhou um viés extremista, fazendo de minorias suas vítimas favoritas. Durante o confronto, Billy Kaplan, o Wiccano, perde o controle de seus poderes mágicos e acaba deixando 20 dos membros da Sociedade inconscientes após um deles ameaçar explodir uma bomba que carregava. Assustados com a possibilidade do garoto perder o controle, os Vingadores decidem levá-lo para uma espécie de diagnóstico com o intuito de impedir que haja um novo caso de “Feiticeira Escarlate”, heroína que moldou a realidade à sua vontade durante a saga Dinastia M, tirando os dons mutantes da maior parte da população. Consciente de que a Feiticeira pode ser sua mãe, o herói parte em uma jornada ao lado de seus amigos para descobrir o paradeiro de Wanda Maximoff e dar a ela uma chance de redenção.
A busca pela Feiticeira
Com a busca pela Feiticeira Escarlate como mote principal de A Cruzada das Crianças, a trama incorpora uma série de questionamentos modernos que vão além do clássico “mocinhos versus bandidos”. Se por um lado existe a possibilidade de Wanda Maximoff recuperar seus poderes e aniquilar de vez a raça mutante - e talvez até outros heróis -, há a esperança para que ela restabeleça a ordem após causar tanto sofrimento no passado. Os heróis se dividem em lados e tomam posições, algumas mais extremas como no caso do Wolverine, que acredita que matá-la é a melhor opção, até outros mais sentimentais como o de Magneto e Mercúrio, que gostariam de reaver uma importante parte de sua família. Em 9 edições, a saga desenvolve um conflito sobre o papel de um herói no mundo moderno com viagens no tempo, grandes batalhas e até mesmo uma discussão sobre segundas chances.
O texto de Heinberg é inteligente e consegue de maneira crível devolver a humanidade à Feiticeira Escarlate ao retomar uma trama do final dos anos 1980. Na época, a heroína e o andróide Visão tiveram os gêmeos Tommy e Billy, que foram absorvidos pelo vilão Mestre Pandemônio em uma grotesca cena em que utiliza os bebês como mãos. Conscientes do quão traumático uma perda poderia ser para Wanda, sua memória é apagada e a existência dos gêmeos se torna um segredo. Anos depois as memórias retornam e o pior acontece, com a heroína atacando - e matando - alguns de seus companheiros Vingadores e criando os eventos que levaram à saga A Queda, em que a equipe chega ao fim, e Dinastia M. Enquanto a heroína enfrentava o peso de seu passado, surgiram Wiccano e Célere, membros dos Jovens Vingadores, que apesar de nascerem de pais diferentes são fisicamente idênticos, e replicam os poderes da Feiticeira Escarlate e Mercúrio, uma série de coincidências que revelaram à Billy o fato de que eles eram de fato os filhos perdidos da heroína.
A jornada de Wiccano e Célere ecoa a origem da Feiticeira Escarlate e Mercúrio estabelecida na edição #185 da revista dos Vingadores, como crianças criadas por ciganos foram perseguidas por serem diferentes. Enquanto os gêmeos Maximoff usam a clássica metáfora de mutantes como pessoas a serem perseguidas, Billy e seu irmão Tommy deixam escancaradas as dificuldades enfrentadas por pessoas diferentes do considerado “normal” de forma mais aberta, especialmente por conta da homossexualidade de Wiccano. Durante o embate contra a Sociedade da Serpente, Hulkling decide atingir um dos vilões não com violência, mas com o próprio preconceito ao dar um beijo em sua bochecha. Em resposta, o vilão passa a destilar preconceitos e afirma que o herói “queimaria no inferno” pelo ato, se colocando como superior por conta de sua orientação sexual. Mesmo praticando atos terroristas e cometendo assassinatos, o antagonista chega a citar textos religiosos para justificar seu discurso preconceituoso.
Na última edição da saga, após o conflito se resolver e a paz se restabelecer momentaneamente no Universo Marvel, Wiccano e Hulkling compartilham um momento de carinho e se beijam, marcando a primeira vez em que o casal troca carícias explicitamente quase sete anos após fazerem sua estreia nos quadrinhos. Em 2019, quase uma década após sua publicação original, o beijo se tornou o cerne de uma polêmica que o acusa de ser um “conteúdo sexual para menores”, quando passa longe disso, retratando um momento singelo entre duas pessoas que se amam sem objetificação. Apesar da repercussão negativa gerada pela tentativa de censura, especialmente por acontecer em pleno Século XXI, o momento acabou se tornando uma ilustração da luta que minorias travam diariamente na tentativa de serem ouvidas e reiterou a importância dos heróis, que não precisam existir em carne e osso para combater grandes vilões como desrespeito e intolerância.