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Crítica

Ms. Marvel | Crítica

A melhor HQ jovem da Marvel consolida Kamala Khan como a Peter Parker do século 21

03.11.2015, às 21H00.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H42

São como os djinns do islamismo, envoltos em nuvem, que os integrantes dos Vingadores aparecem diante de Kamala Khan, adolescente americana de ascendência paquistanesa, quando ela é envolvida em Jersey City por uma "nuvem" muito pontual do Universo Marvel, a Névoa de Terrígeno dos Inumanos, no começo da atual fase da HQ da Ms. Marvel. Como gênios da lâmpada, de fato, os Vingadores concedem a Kamala um desejo - e aí começa a história da garota que, aos 16 anos, fã dos maiores heróis da Terra e tornada superpoderosa pelo terrígeno, de repente pode se tornar também uma heroína.

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A partir desse diálogo com o universo mitológico das lendas árabes, acessível a todo mundo que conhece o mínimo de As Mil e uma Noites, a roteirista G. Willow Wilson inteligentemente desarma resistências contra o islamismo que os leitores americanos poderiam ter, de cara, diante dessa nova fase de Ms. Marvel. Nela, Kamala Khan, que adquire o poder da elasticidade, de mudar de forma e se regenerar, adota o símbolo e o alter-ego da tradicional heroína da Marvel, agora que Carol Danvers responde pelo codinome Capitã Marvel. Aos poucos, ao longo das primeiras 19 edições da série - iniciada em 2014 e que agora em novembro terá sua numeração zerada - Wilson tornou Kamala não só um caso de sucesso na editora mas principalmente, com suas histórias de afirmação juvenil, uma versão multiétnica de Peter Parker para o século 21.

Outro passo inteligente: Wilson evita armadilhas de correção política logo na segunda página da primeira edição, quando os personagens principais - Kamala e seus amigos de colegial - encontram a loira popular da escola, que disfarça seus preconceitos com um discurso de tolerância e é apelidada de "troll preocupado". A ideia, aqui, é que a série não seja condescendente: uma personagem usa o véu sobre a cabeça porque gosta, não porque é obrigada, e o irmão de Kamala é visto como um preguiçoso pelo pai, porque só pensa em rezar. Se Kamala verbaliza suas insatisfações diante da severidade dos adultos (severidade essa que obviamente se agrava dentro da forma como a cultura islâmica trata mulheres), isso não a difere tanto de milhões de adolescentes, independente de credo ou cor, que se julgam incompreendidos pelos seus pais.

É essa sensação de que está lutando contra o mundo que Kamala divide com Peter Parker, e os rumos que a série toma ao longo dessas 19 edições (no senso de humor que Kamala descobre quando está mascarada, depois na hora fatídica de escolher entre o amor e o dever) comprovam que Wilson faz muito bem a lição de casa de emular o super-herói símbolo da identificação adolescente para tornar Kamala também um ícone de sua geração. Muçulmana e jornalista especializada em literatura árabe, Wilson usa aqui o islamismo mais como pano de fundo para uma história que rapidamente se torna universal. Nerd de óculos ou árabe na América, não importa - o princípio da exclusão social é o mesmo, e da inadequação vem o drama que move esses dois personagens.

A forma como a roteirista trabalha esse princípio da inadequação na hora em que Kamala precisa entrar em ação é outro destaque. Porque, como nos desejos feitos ao djinn, nem tudo sai como seu dono sonhava: Kamala comete erros de julgamento e rapidamente aprende que grandes poderes trazem grandes responsabilidades. A Ms. Marvel de Wilson alcança essa noção, porém, sem melodrama ou escalas desproporcionais; é uma HQ bastante discreta, quase toda passada nos mesmos ambientes de Jersey City, e Kamala leva quatro edições para dar sua primeira porrada.

Outro elemento que faz de Ms. Marvel uma HQ antenada com seu tempo é a aproximação com a estética e os temas dos mangás, cada vez mais presentes nos quadrinhos americanos. Mesmo antes de Takeshi Miyazawa assumir os desenhos nas folgas do titular Adrian Alphona, e dar a Ms. Marvel uma inequívoca cara de mangá shoujo, a série já flertava com esse universo nas formas, no traço, mistura de Akira Toriyama (nos alívios cômicos) com Ghibli (a história de formação feminina) com Katsuhiro Otomo (as demonstrações de destruição).

Além de desenhar Kamala mais próxima do Luffy de One Piece do que do Sr. Fantastico da Marvel, Alphona conserva nas fisionomias uma familiaridade que frequentemente se perde quando as histórias de super-herói começam a ficar de fato grandiosas. Sua Kamala Khan nunca deixa de ser uma menina de beleza desengonçada, que faz caretas quando erra e também quando acerta, e que mesmo quando brinca de adulta continua sendo uma adolescente, no "porre" que ela toma enchendo-se de cachorro quente.

E mesmo assim, depois de tornar-se uma figura próxima e de certa forma previsível (nos textos de recordatório que repetem frases de efeito motivacional), Kamala ainda nos surpreende por sua circunstância excepcional, de filha de imigrantes: na edição 19, numa das splash pages mais bonitas das HQs americanas recentes, um abraço emocionado, cercado de cacos de vidro de uma realidade hostil, devolve à HQ uma dimensão muito particular de cumplicidade que só duas mulheres do mundo islâmico são capazes de dividir. Testemunhar essa cena é um presente, e certamente virão outros na série Ms. Marvel de G. Willow Wilson.

Nota do Crítico
Excelente!

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