Um faroeste ambientado no cangaço foi um dos melhores, senão o melhor, lançamento de quadrinhos brasileiros de 2010. Chegando por fora, sorrateiramente com suas chinelas de couro e na direção oposta do sol - para não fazer sombra -, a graphic novel Bando De Dois sacou sua peixeira e tocou o terror de forma inesperada. Os sobreviventes ficaram perplexos com a surpresa do ataque e os admiradores, muito satisfeitos com a divertida história de ação. O sucesso de crítica também foi de público: a primeira edição já se esgotou e esta semana a Editora Zarabatana lança a segunda tiragem.
A história segue os cambaleantes passos de Tinhoso e Caveira de Boi, "bandidois" que sobra de um grupo de cangaceiros liderados por Otônho. O bando foi dizimado pelo Tenente Honório e tem suas cabeças decepadas e colocadas em caixas, rumando em direção à capital, onde serão exibidas como troféus e aviso. Após uma visão febril, a dupla decide vingar os amigos mortos e poupá-los dessa vergonha pública. Uma vingança feita com sangue e metais quentes das balas zunindo pela caatinga e pelas peixeiras afiadas.
Bando de Dois
Bando de Dois
Bando de Dois
Bando de Dois
Os temas ligados à morte - e ao além-vida - são comuns à curta, mas já marcante, obra do paulista Danilo Beyruth. O desenhista egresso do mercado de publicidade - onde ainda atua - além de colaborar com sua arte na série independente Jesus Hates Zombies criou o seu bem-sucedido Necronauta, o salva-vida dos mortos, que teve aventura na premiada coletânea Popgun #3, da Image Comics. E quando foi chamado para colaborar no álbum MSP+50 não poderia ter escolhido outros personagens: a Turma do Penadinho, com a representação da Dona Morte mais sinistra da história dos amiguinhos do cemitério.
Bando de Dois é fruto da pesquisa de Beyruth sobre Lampião e o papel de anti-herói que os cangaceiros do nosso sertão exerciam. Eles eram piratas do deserto que aterrorizavam as vilas, como a Nova Nazaré, lugarejo fictício miserável habitado por um punhado de fanáticos religiosos, e que aos poucos é engolido pelas dunas como ondas do mar em câmera lenta.
Este cenário incrível é onde Tinhoso e Caveira de Boi planejam a emboscada para os "macacos" (policiais) comandados pelo Tenente Honório, que remete a algumas das melhores sequências do faroeste spaghetti dos três Sergios diretores: Corbucci, Solima e Leone - e até de seu expoente americano, Clint Eastwood. E não é só do faroeste que a graphic bebe: a cena inicial de Tinhoso caindo no deserto é praticamente uma homenagem à queda de Tony Janiro em Touro Indomável.
A proposta de Beyruth não é mostrar caubóis estilizados, bonitos e bonzinhos defendendo uma donzela num cânion, mas homens sujos, desdentados e cruéis não medindo esforços nem sangue para alcançar seus interesses - os cangaceiros estão mais para um Franco Nero sujo de terra e menos um John Wayne de barba feita. A história tem muito parentesco com o Velho Oeste realista, no fim das contas. O roteiro esperto, do próprio desenhista, poderia apenas se beneficiar de um leve polimento nos diálogos, mas transparece o lado épico da ambientação que a trama pede. Toda a execução do álbum é como um filme no papel - mas sem perder nenhum recurso de linguagem que os quadrinhos oferecem. A arte é sensacional, uma mistura brasileira de autores clássicos como Alex Toth, Jack Davis, Milton Caniff e Will Eisner.
Os lançamentos brasileiros recentes que se firmam no panteão de grandes obras e elevam a linguagem ao status de arte têm sido pequenos dramas humanos que tocam fundo à sensibilidade. Bando de Dois é quase a antítese disso. É uma obra preocupada em contar uma grande história de ação - coisa rara e difícil de ser bem feita no quadrinho brasileiro - em um ambiente devastado pela miséria centenária, fruto do coronelismo. Embora não seja uma obra atrelada a grandes preocupações sociais, é possível ver uma crítica social na cena dos fiéis da igreja e no embate dos cangaceiros e macacos - que pode ser espelhado nos conflitos atuais entre traficantes e a polícia. Mas Bando de Dois fala, sobretudo, a respeito da grandiosidade crua do espírito humano diante da tragédia, mesmo que esse espírito esteja corrompido pelo crime e o desejo de vingança.