Maus - A História de um Sobrevivente

Créditos da imagem: Divulgação

HQ/Livros

Crítica

Maus - A História de um Sobrevivente

Art Spiegelman usou as HQs para registrar um dos piores momentos da história da humanidade

15.02.2019, às 15H15.

Você escreveria a biografia de seu pai se tivesse a certeza de que ele era uma pessoa extremamente mesquinha, mal humorada e possivelmente culpado pelo suicídio de sua mãe? Pois o norte-americano Art Spiegelman fez isso em Maus.

As histórias foram publicadas originalmente na revista underground Raw entre 1980 e 1991. Sócio-fundador e editor da publicação, Art Spiegelman compilou um primeiro volume em 1986, com o título Maus - A História de um Sobrevivente, cujo subtítulo era Meu Pai Sangra História. Cinco anos depois, Maus II - E aqui meus Problemas Começaram chegava às ruas. Em 1992 ele ganhou o prêmio Pulitzer, um dos mais conceituados do meio jornalístico e literário, e nunca antes dado a uma HQ.

Mas o que torna esta Graphic Novel tão especial não são os prêmios, mas sim os motivos que a fizeram tão laureada. Art usou esta mídia discriminada e geralmente associada a obras infantis para falar de uma das maiores atrocidades da história recente da humanidade: o Holocausto. Os pais de Art, os poloneses judeus Vladek e Anja, sobreviveram a Auschwitz e migraram para os Estados Unidos, onde ganharam uma segunda chance e um novo filho, o próprio Art. O primeiro rebento do casal, Richieu, não teve a mesma sorte e, junto com tantos outros parentes e amigos dos Spiegelman, morreu na sua Polônia natal.

Art aprendeu a duras penas que sobreviver a Auschwitz não é necessariamente continuar vivo. Além de agüentar todas as manias que seu pai adquiriu no período em que foi prisioneiro dos nazistas, ele viu sua mãe se deprimindo até chegar ao ponto em que não aguentava mais e acabar se suicidando.

Amor e Guerra

Art e seu pai não eram muito próximos. Mas assim como outros filhos de judeus que passaram sua vida ouvindo as mais horrendas histórias sobre os campos de concentração e em determinado momento passaram a buscar suas raízes, ele resolveu transformar as memórias de seu pai em quadrinhos. A escolha por esta mídia era a mais lógica para ele, que sempre gostou e leu muitas HQs. Mas o resultado final é uma aula de como usar os quadrinhos para contar uma história. Art mostra as conversas (e discussões) que ele teve com seu pai como se estivessem acontecendo naquele momento, a história de seus pais em flashback, fotos, antropomorfismo, história em quadrinhos dentro da história em quadrinhos, detalhamentos de esquemas desenhados por seu pai de como eram os esconderijos, mapas, etc.

O desenho de Spiegelman, bem sujo, é uma conseqüência do estilo da Raw, mas serve também para mostrar que aqueles ratos não são bonitinhos como os desenhados por Walt Disney. O antropomorfismo que transforma judeus em ratos, nazistas em gatos, norte-americanos em cães e poloneses em porcos reflete a estrutura da vida naqueles dias. Sem nem saber o porquê, os gatos correm atrás e matam os roedores. Na escolha dos orelhudos para representar os judeus há também uma referência ao termo com que os nazistas se referiam à raça inferior: vermes da sociedade; e ainda uma resposta à afirmação que abre o primeiro capítulo: Sem dúvida os judeus são uma raça, mas não são humanos, de Adolf Hitler.

Manual de Sobrevivência

Mostrando a forma mandona e teimosa de seu pai, Art começa a história do jeito que Vladek lhe conta, antes mesmo da época em que conhecia Anja ou sua segunda esposa, Mala. Naqueles dias ele era muito bonito e tinha várias namoradas, mas nada muito sério. Quando conheceu aquela pequena menina-rica de Sosnowiec, o cupido o acertou em cheio. Vladek lutou até mesmo contra os impulsos de Anja, que por um tempo acreditou que ele só estava interessado na fortuna de sua família. Quando a vida dos dois começava a se acertar, os alemães chegaram à Polônia. Deste momento até o fim do livro, os dois passaram por separações, privações e perdas constantes, mas sempre conseguiram arranjar um jeito de se ver ou se comunicar.

Assim como Auschwitz mudou de formas diferentes as vidas das pessoas que passaram por lá, a maneira como cada uma delas conseguiu sobreviver também é bastante variada, mera obra do acaso. Como o dinheiro que cada um tinha fora dali já não existia mais, era bastante comum haver traições até mesmo de judeus contra judeus. Vladek caiu em algumas delas e conseguiu se salvar com a ajuda de pessoas que ele conhecia, do seu trabalho árduo, dos seus contrabandos e escambos, da sua inteligência, e, claro, da sua sorte. Pela simples falta de qualquer um destes itens seis milhões de judeus morreram na Segunda Guerra Mundial.

Enquanto isso, do outro lado do mundo...

Por mostrar de forma tão gráfica o sofrimento diário, Maus e o japonês Gen - Pés descalços (de Keiji Nakazawa) são provas de que história em quadrinhos não é só coisa de criança. As duas obras ambientadas na Segunda Guerra mostram de formas diferentes e diferenciadas que é possível tratar temas sérios como o Holocausto e o bombardeamento em Hiroshima nas HQs.

Se a Conrad Editora fez um ótimo trabalho na publicação da obra japonesa aqui no Brasil, a Cia. das Letras confirma com este livro que quer o seu lugar entre as principais editoras de quadrinhos do país. O título não era inédito por aqui - havia sido lançado nas versões separadas pela Ed. Brasiliense em 1986 (Maus I) e 1995 (Maus II) -, mas estava esgotado há tempos e merecia uma nova edição à altura da sua importância. Finalmente ganhou. Além de um papel de alta qualidade e o preço bastante acessível (R$ 39* por 300 páginas de leitura ininterrupta), a tradução manteve o sotaque alemão do protagonista e traz a novos leitores a dificuldade de Art Spiegelman de conviver com seu pai. Se estivesse vivo, até o resmungão (e às vezes racista) Vladek, ficaria orgulhoso.

*Crítica publicada em 2005, HQ atualmente custa R$59,90.

Nota do Crítico
Excelente!
Maus
Maus

Roteiro: Art Spiegelman

Ano: 2005

Desenhista: Art Spiegelman

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